A OAB e a Democracia — qual é a razão de ser da Advocacia moderna?

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*Por Ericson Crivelli

A ameaça do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ao direito de greve dos bancários nos traz importantes elementos à reflexão. É o que tentaremos fazer adiante. Recordamos que o exercício da advocacia como profissão, tal qual a conhecemos, é fruto da modernidade. É certo que conhecemos o seu ofício desde a antiguidade. Como operadores do Direito, tinham as suas funções umbilicalmente ligadas ao Estado. Assim foi em Roma, Grécia e onde quer que um terceiro tenha se proposto a representar os interesses de indivíduos ou grupos em um conflito. Havia, em alguma medida, uma intermediação entre o Estado e os indivíduos, mas o Estado era o provedor do serviço prestado pelo terceiro. Ainda assim, a profissão associou-se, desde tempos imemoriais, à ideia da busca da justiça.

Não é, no entanto, da advocacia na antiguidade que estamos interessados aqui, mas do seu exercício na modernidade. A advocacia, tal qual a conhecemos hoje, emergiu das formidáveis transformações sociais e econômicas que ocorreram após a era das luzes. Desta forma, a advocacia dos tempos modernos é contemporânea, não por acidente, do direito monista e universal, do próprio Estado moderno e, mais adiante, da democracia contemporânea.

Recordamos, àqueles que banalizam a advocacia ou esforçam-se para reduzi-la às negociatas de balcão, que o Direito que ficou para trás com o advento da modernidade, era o direito fragmentário da nobreza, Igreja, corporações de ofício ou dos servos da gleba. Dá para imaginarmos que Direito e que interesses encontravam defensores no mundo social e econômico do medievo, só para restringirmos nossas considerações a esse período que tomou séculos de história da humanidade.

Imaginemos o quão importante foi conquistarmos um só Direito, uma só fonte: o Estado. Tomemos como parâmetro o enorme passo que foi dado pela humanidade ao reconhecer que todos os indivíduos, independentemente de sua origem social, condição econômica e gênero, são portadores de direitos e são iguais no exercício dos mesmos, sobretudo perante os poderosos e o Estado.

O Estado moderno, o seu direito universal, sob a égide do Estado liberal, incluiu toda a sociedade então existente debaixo de direitos e garantias individuais. Na sequência, em função do esforço para dar-se efetividade material à igualdade jurídica e formal dos indivíduos — tão duramente conquistada pela sociedade civil —, reconheceu-se a organização dos indivíduos em associações e sindicatos. Este processo de mudança acrescerá ao Estado de Direito, símbolo seminal deste processo de avanços do Estado moderno, o conceito democrático constituindo o Estado Democrático de Direito. Mais adiante, far-se-á a inclusão do adjetivo Social entre o Estado e o Democrático, como ocorreu com a nossa Constituição de 1988.

Ora, as consequências desse processo, tecido meticulosamente durante alguns séculos pelos nossos antepassados, não foram nada triviais sobre a advocacia e seus profissionais. A figura do profissional moderno do Direito é daquele que, formado tecnicamente para o seu mister, está disponível para patrocinar os direito dos indivíduos, empresas e organizações sociais em busca de justiça. O sentido de justiça foi apurando-se e moldando-se a esta sociedade que pleiteia a igualdade de todos perante a lei. Não é por outra razão que o sentido moderno da ideia de justiça está associada à ideia de igualdade.

Quando se diz que há uma lesão de direito, esta ruptura nas relações jurídicas, sociais e econômicas rompe com o equilíbrio entre as partes em uma determinada relação. Equilíbrio que só se refaz na igualdade. Este Direito se realiza na sociedade contemporânea de massas através do regime democrático, que também tem por base a ideia da igualdade dos eleitores.

Qual é o papel dos advogados na sociedade contemporânea de massas organizada através do regime democrático? Lembramos que agora, como outrora, os poderosos de sempre, os plutocratas, não necessitariam ter a seu dispor profissionais cuja existência e exercício vêm regulados pela lei do Estado organizado democraticamente. Quantos nobres e cardeais não correram os palácios na defesa dos interesses materiais da nobreza e seus beleguins? A razão da existência da profissão regulada é submeter a todos, do operário ao capitalista, a um profissional formado e que exerce o seu mister sob as mesmas exigências (outra vez a ideia da igualdade).

Isto tudo posto para demonstrar que a profissão organizada serve àqueles despossuídos de poder econômico e político para fazer com que seus representantes percorram os corredores dos palácios da Justiça e do Poder Político em busca da efetividade da justiça, ou seja, do exercício da igualdade. Logo, não há que se duvidar que a Advocacia é um instrumento do regime democrático e dos valores que lhe alicerçam.

É claro que aqui estamos descrevendo, como diria Weber, um tipo ideal, um padrão a ser buscado pela sociedade. Nem sempre foi assim que as coisas funcionaram. No regime autoritário, no qual estivemos mergulhados por mais de duas décadas, os seus opositores, entre outros os sindicatos — a Comissão da Verdade desvendou histórias que mostraram a presença de militares nas linhas de montagem de grandes indústrias para evitar uma greve —, enfim, todos que perderam com suas políticas excludentes e repressoras não encontraram eco ou defensores em Brasília.

Neste período, as poderosas associações da indústria nacional, confortavelmente instaladas em palácios da Avenida Paulista, faziam seus representantes “desembaraçarem” seus interesses nos corredores dos Ministérios na Capital da República. Não foi por outro motivo que o festejado cientista político argentino, já falecido, Guillermo O’Donnell, denominou a nossa ditadura como “regime burocrático autoritário”.

Feitas estas considerações qual é a razão de ser da advocacia na sociedade contemporânea? Qual é razão de ser de uma associação ou organização que represente os profissionais que exercem a advocacia? Cabe uma resposta num único diapasão: a defesa dos direitos individuais e coletivos dos materialmente despossuídos e do regime democrático.

Não se quer dizer que os interesses do capital e daqueles que são social e economicamente empoderados não sejam legítimos. A ideia da sociedade democrática e do convívio e tolerância entre os desiguais legitimam social e politicamente seus interesses. Aqui se reconhece a sua a sua legitimidade. Não é disso que estamos falando.

A ideia do Direito organizado e da sociedade democrática é exatamente serem vocacionados para mitigar estas diferenças e sustentar a ação dos “desempoderados”. Este é o papel que se pede à advocacia e à OAB: a defesa intransigente dos direitos fundamentais dos cidadãos e da democracia.

Desta forma, não se compreende o porquê de a OAB ter voltado as suas costas, como o fez na construção do regime autoritário — recordamos o apoio da OAB ao golpe de 64 —, ao papel da efetivação da igualdade, logo, da Justiça. A OAB apoiou o impeachment da presidente eleita num jogo político de interpretação da Constituição no mínimo duvidoso e que poderá deixar feridas na nossa democracia.

Agora, fomos surpreendidos com a insistência da OAB Federal para que seus órgãos estaduais se lancem contra a greve nacional dos bancários. Uma greve cujas legalidade e legitimidade nem mesmo a Fenaban ousou questionar. Por toda parte, os seus órgãos estaduais têm sofrido pressão para pedir a sua abusividade e ilegalidade, sob o pretexto de garantir o acesso dos advogados aos alvarás judiciais, bem como pedem o funcionamento de todas as agências do Banco do Brasil.

Recordando que este governo de turno tem dois banqueiros: um no Ministério da Fazenda e outro na presidência do Banco Central. O Conselho Federal tudo fez e tudo tem feito no último ano para jogar o órgão na defesa dos poderosos e economicamente empoderados, mantendo silêncio frente aos ataques aos direitos fundamentais do garantismo aos réus na ação da Polícia Federal e do MPF. Fazem a defesa intransigente da liberdade de expressão, quando esta serve ao cartel da grande mídia e silencia aos ataques e provocações da PM paulista nas manifestações de rua da nossa juventude.

Agora, este Conselho resolveu estimular, como se faltassem provas dessa opção autoritária, o posicionamento contrário ao direito de greve dos bancários — direito este constitucionalmente assegurado a todos os trabalhadores —, prestando um serviço, ao que se saiba, não solicitado pela própria Fenaban. É de se perguntar: quando este órgão se recusa a exercer o seu papel ao qual estaria vocacionado na sociedade democrática, qual tarefa lhe estará reservada no futuro?

A OAB, aliando-se a esses interesses do mercado, sobrepondo-os aos da sociedade, busca a sua deslegitimação. A quem serve um órgão com receita parafiscal e privilégios legais e processuais numa sociedade regida exclusivamente pelas regras do mercado? Com a palavra o nosso bâtonnier.

*Ericson Crivelli é advogado trabalhista em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, ex-professor adjunto de Direito do Trabalho da UNESP, consultor da FAPESP, mestre em Ciência Política pela UNICAMP, doutor em Direito Internacional pela USP, membro da Comissão de Direito Sindical da OAB-SP e do Conselho da AATSP.

Fonte: Contraf-CUT

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