Capitalismo e bem viver não andam juntos. Na verdade, nem se aproximam, explica o pensador Ailton Krenak, membro da Academia Brasileira de Letras, o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na instituição.
Conceito cunhado por povos indígenas da região andina, na América Latina, Sumak Kawsay foi primeiramente traduzido ao espanhol como buen vivir, e posteriormente, chegou ao Brasil como bem viver. Segundo Krenak, “é uma troca entre o território, a paisagem, o lugar onde nós vivemos e o nosso corpo”.
“Bem viver não é estar vivo ou estar bem. É a reciprocidade do modo de vida dos humanos com a natureza, com o lugar onde nós vivemos”, explica em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda-feira (10).
O escritor afirma com desilusão que não vê no Brasil “experiências onde as práticas que instituem o bem viver são seguidas e respeitadas”.
“Nem mesmo nas comunidades que vivem na floresta estão conseguindo ficar fora desse sistema de troca capitalista.”
No entanto, ele defende que países que foram “privados de toda essa enxurrada capitalista, de alguma maneira, devem estar aprendendo algo sobre bem viver”, afirma, citando embargos econômicos impostos a algumas nações do planeta, como é caso histórico de Cuba ou, mais recentemente, a Venezuela.
Na entrevista, o escritor explica com mais detalhes a ideia, fala sobre o encontro com a antropóloga Eunice Paiva, cuja história é o mote de Ainda Estou Aqui, filme que concorre ao Oscar, e sobre a importância de escrever para crianças.
Confira a entrevista na íntegra
Programa Bem Viver: O que significa o conceito de Bem Viver?
Ailton Krenak: Eu sou movido por essa expressão que chegou a nós em castelhano, buen vivir, traduzido do quechua, que é Sumak Kawsay.
Aqui no Brasil, eu não conheço experiências, de fato, onde as práticas que instituem o bem viver são seguidas, são respeitadas. Porque nós estamos imersos numa realidade de economia de cotidiano onde o que conta, as trocas que acontecem, não são entre a natureza e as comunidades que habitam cada espaço.
O bem viver é uma troca entre o território, a paisagem, o lugar onde nós vivemos e o nosso corpo. Se essa troca for feita dentro do princípio do Sumak Kawsay, a gente não teria o capitalismo como o sistema vigente na nossa vida.
Os povos andinos que vivem o bem viver não são capitalistas. Eles vivem fora dessa economia de mercado, eles trocam suas mercadorias, seus produtos, mas eles não estão inseridos nessa coisa que se tornou a nossa realidade no Brasil.
Nem mesmo nas comunidades que vivem na floresta estão conseguindo ficar fora desse sistema de troca capitalista. E o sistema de troca capitalista não precisa bem viver.
Bem viver não é estar vivo ou estar bem. É a reciprocidade do modo de vida dos humanos com a natureza, com o lugar onde nós vivemos.
Eu já tive a oportunidade de falar em alguns contextos e isso tudo se resumiu a um livrinho chamado Caminhos para o Bem Viver, que sugere que a gente ainda tem que andar muito para chegar lá.
Em seu livro mais recente, ‘Um Rio Um Pássaro’, há um ensaio no qual o senhor faz um crítica à posição neutralidade que alguns países do mundo vem adotando, desde a Segunda Guerra até agora. O que seria isso?
A neutralidade a que eu me refiro diz respeito a uma atitude não só de indivíduos, mas dos povos que pretendem manter diante da situação global que nós vivemos.
Nós tivemos violências contornando as nossas fronteiras territoriais e alguns povos ficaram indiferentes, por exemplo, à tragédia da destruição da Palestina, que todo mundo assistiu até o final e o máximo que as pessoas fizeram foi um reclamo contra a violência que Israel estava promovendo naquela região do mundo, patrocinado pelos Estados Unidos.
Foi o máximo, não chegaram sequer a boicotar as indústrias e os produtos desses dois países que a gente continua consumindo os artefatos, as coisas que eles produzem.
Nós estamos sempre, de alguma maneira, escolhendo uma atitude de neutralidade diante da violência que cerca a vida dos povos, dos nossos vizinhos.
Agora nós estamos diante de uma nova situação que alarma o nosso continente, que é os Estados Unidos ameaçando todos nós com a arrogância de um país que tem armas e que a gente continua comprando os produtos deles, consumindo os produtos deles.
Como diz o [Gustavo] Petro [presidente da Colômbia], então, que eles taxem os produtos, mas que a gente também tenha a capacidade de viver sem os produtos deles.
Não existe uma maneira de viver neutro no mundo de hoje, com tantas agressões acontecendo a nações vizinhas…
Não, mas é interessante também considerar que nós estamos com essa interdependência tão entranhada que se você disser para as pessoas pararem de comprar os produtos que os Estados Unidos exportam para cá, a maioria das pessoas vão dizer que não sabem viver sem isso.
Essa tralha tecnológica toda que nós consumimos como se fosse a única maneira de habitar o mundo.
E qual o caminho pra gente conseguir sair dessa dependência dessas bugigangas? Principalmente falando das ferramentas de comunicação.
A gente estava falando de bem viver, né? Para a gente reivindicar uma condição de bem viver, a gente teria que se desfazer disso.
Nós estamos querendo habitar a terra do modo errado e ter uma resposta boa.
A ideia de pobreza e riqueza, como diz o Pepe Mujica, atravessa a compreensão das pessoas e toca nessa questão do bem estar que nós estamos falando.
O Pepe Mujica insistiu em viver uma vida de simplicidade, que não é pobreza. Viver uma vida de simplicidade é uma escolha. Mas se você olhar quantas pessoas que alcançaram a relevância dele na história recente, que conseguiram escapar ao cerco do consumo, do consumo de todo o aparato, do carro, da moradia, dos equipamentos que essas pessoas vão se tornando dependentes para poder viver.
O Pepe até agora anda num Fusca, né? E eu não acredito que ele faça isso para ofender ninguém, ele faz isso porque ele sabe fazer assim.
Agora, quantos de nós são capazes de fazer isso e sabem fazer isso? Conseguem viver sem a fúria do consumo, a coisa da mercadoria.
O Davi Kopenawa Yanomami fala que nós todos já nos tornamos uma espécie de sociedade da mercadoria, que a gente não sabe mais distinguir entre o que nós precisamos e o que a mercadoria precisa.
Eu também me incluo entre as pessoas que têm dificuldade de dizer “não, eu não preciso de um novo telefone, de um novo aparelho, de uma nova máquina”.
Eu também me incluo, mas eu faço um esforço para não me tornar um dependente total.
Alguns países que sofreram embargo tiveram que aprender a viver com a mesma bicicleta ou mesmo carro durante dez, vinte, trinta anos. Eles sobreviveram, [mas]os outros acham que isso é uma privação.
Algumas pessoas acham que é um absurdo o fato deles estarem privados de toda essa enxurrada capitalista, então, de alguma maneira, eles devem estar aprendendo algo sobre bem viver.
Ailton, o senhor viu ‘Ainda Estou Aqui?’ Como tem avaliado a repercussão nacional e internacional?
A arte tem essa magia, a arte consegue fazer coisas que o horizonte imediato da história não revela, a arte faz isso, a arte surpreende.
O que nós estamos tendo agora com esse amplo reconhecimento do filme é um evento incomum. A gente não pode pensar que nós vamos entrar agora na lista daqueles que ganham prêmios.
A gente tem que pensar que esse filme conta uma história terrível sobre a vida brasileira. E talvez seja isso que está fazendo com que tanta gente queira assistir esse filme e que tantas pessoas voltadas para o mundo da arte, estejam envolvidas com a sua promoção e reconhecendo a sua importância.
Mas a gente não pode achar que por causa disso o Brasil agora vai passear no tapete vermelho. Isso é uma excepcionalidade, é muito bom, mas a gente não precisa também achar que com isso nós vamos mudar a realidade dura, que nós ainda vivemos no nosso país, de violência.
A violência do aparelho do Estado, do descontrole do aparelho do Estado, com as polícias soltas por aí. Ainda tem muita casa sendo invadida, e muitos espaços domésticos inseguros para as pessoas viverem.
É bom lembrar disso, para a gente não ficar muito eufórico com essa história de um filme e acreditar que ele vai mudar a nossa realidade. Ele vai acrescentar a relevância no campo da arte, vai nos estimular a contar mais histórias, a fazer bons filmes.
Parabéns a todo mundo que fez esse ótimo filme e está propiciando o momento de contentamento para os brasileiros, pelo menos uma parte dos brasileiros.
O senhor chegou a conhecer a antropóloga Eunice Paiva, certo?
Sobre minha relação com a doutora Eunice… o que eu tinha a falar sobre isso, outros colegas também que conviveram com ela, confirmam, como a Carmen Junqueira, os antropólogos e os advogados da Comissão de Direitos Humanos de São Paulo, que acompanharam o trabalho dela e a trajetória dela, todos confirmaram isso.
O Marcelo [Rubens Paiva, autor do livro Ainda Estou Aqui] fez uma pequena referência no livro dele, quando ele disse que um dia me encontrou na casa da dona Eunice, falando sobre territórios indígenas, direitos indígenas, constituição, foi esse o rol de assuntos que a gente conversou.
Eu te confesso que eu não tinha a menor ideia do vulto daquela mulher, eu só fui aprender isso depois, ao longo da nossa convivência, que contando daquela época até agora já vão lá que é 30 anos.
É maravilhoso alguém que vai ao longo da vida revelando a grandeza que tem. Eu falo com muito respeito e admiração pela doutora Eunice Paiva e eu acho que o vulto da pessoa dessa senhora, anima muitas outras pessoas a ter grandeza, é admirável.
Ano passado o senhor lançou seu primeiro livro voltado para o público infantil, ‘Kujan e os meninos sabidos’. O que te impulsionou a publicar para crianças?
Há muito tempo, eu visitava escolas e fazia palestra para crianças, para grupos de 60, 100 crianças, crianças de 6 anos, 8 anos de idade.
Há 20 anos eu percorria escolas da rede pública porque eu achava que era importante levar para as crianças aquilo que os seus pais não tiveram, que era uma educação para a convivência com os povos indígenas, com a diversidade étnica e cultural do nosso país.
Quando eu entrava numa sala de aula, numa dessas periferias brasileiras, as crianças me recebiam fazendo “uh, uh, uh”. E muitos deles iam com a carinha pintada, com uma faixa branca na cara.
As crianças, na sua ingenuidade e desinformação, achavam que podiam saudar uma pessoa indígena na sala de aula fazendo como nos filmes americanos.
Agora que eu já tenho meus livros, tenho editora e tal, foi fácil para mim buscar um dos textos narrativos que eu já levei para as escolas e fazer ele ser a um livrinho, esse texto é parte de uma narrativa do povo Krenak que é contada desde sempre.
E é muito interessante que apesar do livro estar num formato e sendo amplamente distribuído para o público infantil, ele não é um livro infantil, ele é uma história milenar.
É a história da criação do mundo, é um fragmento da história da criação desse povo Krenak, e como esse povo que foi passando o tempo até chegar a esse século 21.
Esse povo viveu na floresta e, hoje, está à margem do rio Doce, esse rio está contaminado pela mineração e as famílias são abastecidas por caminhões pipa que trazem água de outra bacia hidrográfica porque essa está drogada pela mineração
Será que essa história também é infantil? A história da destruição de uma bacia hidrográfica de 600 quilômetros, que é o rio Doce.
O espírito do rio agora está imerso na lama da mineração, uma lama tóxica que não permite nem que a gente pesque, o rio está em coma.
Os Krenak vivem na mesma margem deste mesmo rio, que os antigos cantavam, e que agora não pode ser sequer utilizado para irrigar as plantas.
Se a gente não for capaz de ofertar boas histórias pras crianças, elas não vão ter os exemplos de mundo para viver, o bem viver vai ficar só como uma legenda e não como uma possibilidade de mudança e transformação.
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Fonte: Brasil de Fato