Dinheiro público é usado para privatizar o saneamento no Brasil, mostra pesquisa

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Pesquisa mostra que empresas privadas utilizam debêntures para comprar ativos de água e esgoto; especialistas e sindicalistas alertam para risco à universalização e à soberania hídrica.

Uma pesquisa encomendada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente da Bahia (Sindae-BA) ao Centro Internacional de Transparência e Pesquisa em Fiscalidade Corporativa (CICTAR) aponta que empresas privadas vêm usando debêntures incentivadas e outros mecanismos de financiamento com benefícios fiscais federais – em teoria destinados a investimentos em infraestrutura – para adquirir ativos públicos de saneamento. Para as entidades, essa prática transforma recursos públicos em lucro privado e ameaça a universalização do serviço.

Segundo o levantamento, empresas privadas receberam em benefício próprio R$ 5 de cada R$ 10 dos recursos captados na B3 ( Bolsa de Valores) por meio de incentivo governamental criado para levar água e esgoto a 84 milhões de brasileiros que não têm acesso a esses serviços.

As empresas emitem títulos de dívidas, recebem descontos em seus impostos, mas a maior parte do dinheiro obtido com essas operações no mercado de capitais vai para financiar ou refinanciar os valores na aquisição de novas empresas, e não para investir nos serviços que elas já prestam.

Fernando Biron, secretário de Saneamento da Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU) e dirigente do Sindae-BA, reforça que “investimento público é essencial, mas o financiamento público não pode ser sequestrado para gerar lucro para fundos”.

A pesquisa também aponta interesse de capital estrangeiro no setor. Biron explica: “Fundos internacionais olham para o nosso lençol freático. Se houver escassez nos países deles, eles vão importar água do Brasil. Proteger nossos recursos é uma questão de soberania e de direito do povo brasileiro”.

Somente em 2024 a BRK Ambiental, que se utiliza de dinheiro público para comprar ativos de saneamento, desde que foi comprada pelo fundo Brookfield, pagou mais de R$ 1 bilhão em juros, mais do que investiu em obras ou folha de pagamento. Enquanto isso, a população está pagando tarifas 71% mais caras, e a empresa enfrenta quase R$ 50 milhões de multas pelo país e duas CPIs.

“Parte desse endividamento é para comprar concessões e aumentar lucro, não para melhorar o serviço. Não é só a BRK; outras empresas, incluindo de capital estrangeiro, usam o mesmo mecanismo”, diz a pesquisadora Livi Gerbase, do CICTAR.

BRK Ambiental negou o uso de debêntures em proveito próprio e que a dívida está controlada, mas a pesquisadora afirma que “o padrão de endividamento da BRK é alarmante e já afeta a qualidade dos serviços”.

O dirigente da CNU também se preocupa com o endividamento das empresas porque quem vai pagar a conta da privatização será o consumidor porque ocorreu em outros países.

“Se as empresas se endividarem demais, não terão capacidade de prestar serviços. No Reino Unido, por exemplo, empresas privadas se endividaram para pagar dividendos e a qualidade caiu”, afirma.

O uso do dinheiro público

Essa situação começou com a Medida Provisória (MP) nº 844, durante o governo Michel Temer (MDB-SP), que abriu o caminho para fundos internacionais adquirirem empresas públicas de saneamento. “O BNDES passou a financiar esse processo, transformando lucro privado em risco social”, ressalta Biron.

Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020) reforçou essa dinâmica, permitindo que debêntures incentivadas financiem a compra de outorgas em leilões privados. “O dinheiro do saneamento está sendo usado para gerar lucro para fundos internacionais, não para levar saúde às pessoas”, afirma o dirigente.

A pesquisadora da CICTAR acrescenta que “as debêntures já existiam desde 2011, mas só a partir do novo marco do saneamento foram usadas para financiar concessões privadas. O governo poderia alterar a legislação para impedir que incentivos fiscais financiem privatizações, direcionando-os para expansão de infraestrutura em áreas vulneráveis”, diz Livi.

O saneamento no Brasil

No Brasil para cada R$ 1 gasto em saneamento, R$ 9 são poupados em saúde, mas para que o país atinja 100% de saneamento é preciso investimento público, por causa da natureza da empresa pública, que é social.

“Hoje o Brasil tem 86% de cobertura de água e 62% de coleta de esgoto, mas os números não refletem completamente a realidade, pois não consideram fossas sépticas ou comunidades isoladas. Quando se fala em água, existem comunidades que usam poços artesianos. Então, esse número é apenas uma base para discutir a universalização”, explica o dirigente da CNU.

Estados e cidades privatizados e seus impactos

  • Manaus: privatizada há 22 anos, apresenta apenas 15% de cobertura de esgoto e perdas de 72% na distribuição de água. “O faturamento da empresa privada é igual ao de toda a Bahia, mas a população sofre com tarifas altas e serviços precários”, alerta.
  • Rio de Janeiro: maior leilão de saneamento do país; serviços inacabados e tarifas elevadas prejudicam moradores. “A promessa inicial parecia um conto de fadas, mas a comunidade não está recebendo água e as contas são altas”, critica.
  • São Paulo: Sabesp é a maior empresa do setor no país. “Vender saneamento é lucrativo para quem compra e vende, mas não para o povo. O sistema Cantareira já teve problemas resolvidos apenas com dinheiro público, não pelos parceiros privados”, lembra Biron.
  • Alagoas: dos 74 municípios previstos para concessão, apenas 13, os mais lucrativos, foram privatizados. “A taxa de água praticamente dobrou ou triplicou, e o público não tem mais subsídio cruzado, que é essencial para atender áreas vulneráveis”, completa.

“Esses quatro exemplos são apenas alguns, mas refletem a situação na maioria dos estados brasileiros. A mídia pouco divulga essas consequências. No caso da Bahia “temos apenas dois municípios privatizados entre 417. Mas, vimos a oportunidade de fazer um estudo acadêmico para mostrar aos baianos e ao país os efeitos da privatização do saneamento”, conta Biron.

O que deve ser feito

Biron aponta três medidas essenciais:

  1. Parar o financiamento público a empresas privadas para compra de ativos públicos.
  2. Cobrar cumprimento das metas e serviços: “Hoje, serviços não são entregues como deveriam, como vimos em Alagoas, onde municípios ficaram dois meses sem água”.
  3. Alterar a lei 14.026 para impedir que empresas públicas sejam obrigadas a privatizar ou a depender de financiamento para saneamento.

O levantamento é apoiado pela Internacional de Serviços Públicos (ISP) e o Observatório de Direitos de Água e Saneamento (Ondas) estão apoiando o relatório. Leia a sua íntegra aqui.

Fonte: CUT Brasil

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