A ideia de que a Amazônia teria sido um vazio verde, isolado e inóspito, está ruindo. A imposição de uma tradição colonial e eurocentrada consolidou por séculos a imagem da maior floresta tropical do mundo como terra de escassez, habitada apenas por populações consideradas “primitivas”. Mas descobertas recentes da arqueologia brasileira vêm desmontando esse mito e provando que a história de abundância, tecnologia e bem viver não pôde ser contada pelos povos indígenas dizimados ao longo dos últimos séculos
Nas últimas décadas, escavações e estudos em diferentes pontos da região revelaram evidências de sociedades indígenas altamente complexas, que manejavam o território com engenhosidade e sofisticação. Estima-se que, antes da invasão europeia, cerca de 10 milhões de pessoas viviam na Amazônia, falantes de ao menos 170 línguas diferentes, em uma diversidade de modos de vida e formas de organização social. Cidades planejadas, redes de estradas, técnicas avançadas de cultivo e a produção da terra preta – um solo fértil criado por povos originários há milênios – revelam uma floresta construída, mais do que apenas preservada.
Essa memória redescoberta tem implicações profundas não apenas sobre o passado da região, mas também sobre seu futuro. Em um cenário de crise climática global e colapso urbano, pesquisadores apontam que os modos de vida e as tecnologias ancestrais da Amazônia podem inspirar soluções sustentáveis para as cidades atuais, especialmente aquelas mais expostas aos extremos do clima, como Belém (PA), capital amazônica que sediou a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) e já é apontada como uma das cidades mais quentes do mundo até 2050.
Nesta reportagem, o Brasil de Fato ouviu dois importantes nomes da arqueologia amazônica: o professor Eduardo Góes Neves, referência internacional nos estudos sobre as civilizações da floresta, e a arqueóloga paraense Mayara Mariano, que investiga como esses saberes podem alimentar políticas públicas e formas de viver mais justas e resilientes.
A partir de suas descobertas e reflexões, este texto propõe um mergulho em uma floresta viva do passado, onde abundância, diversidade e bem viver eram parte de um projeto coletivo de longo prazo.
A floresta que foi construída: desmentindo o mito da escassez
Por muito tempo, a Amazônia foi tratada como uma região “sem história, sem história humana, sem história indígena e um ambiente pristino”, afirma o arqueólogo Eduardo Neves, professor titular do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais nomes da arqueologia amazônica no Brasil. Essa leitura, segundo ele, dominou o pensamento acadêmico e político sobre a floresta ao longo de boa parte do século 20. “Essa visão serviu de justificativa para vários projetos de desenvolvimento econômico catastróficos”, afirma.
Mayara Mariano, arqueóloga e pesquisadora Museu Paraense Emílio Goeldi, é responsável pelo estudo Tecnologias ancestrais para o bem viver em cidades da Amazônia, do LabCidade, uma organização sediada em Belém (PA) que visa promover cidades amazônicas mais justas, resilientes e adaptadas às mudanças climáticas. Ela reforça que essa imagem da Amazônia como espaço vazio e atrasado foi construída a partir de um discurso eurocentrado. “A nossa missão é desmanchar e mudar essa ideia vendida pelo eurocentrismo de que a Amazônia era um lugar inóspito, um lugar de escassez, um lugar difícil.”
Para ela, esse imaginário foi ativamente instrumentalizado pelo Estado brasileiro: “Esse discurso ideológico determinista de escassez foi muito utilizado no âmbito da ditadura militar mesmo, para ocupação desse território, para a propagação da violência contra os povos indígenas.”
O próprio campo científico colaborou com essa distorção. Neves lembra que, no século 19, os primeiros cientistas naturalistas que percorreram a região interpretaram a diversidade cultural como um traço negativo. “Eles achavam que essa diversidade era reflexo de um processo de degeneração. Associavam isso à condição tropical”, explica o arqueólogo. “Isso alimentou um colonialismo interno muito forte até hoje no nosso país”.
Mas essa narrativa começa a ruir à medida que novas evidências vêm à tona. Escavações realizadas nas últimas décadas ajudam a remontar o cenário Grande Amazônia antes da invasão europeia. Essas populações que somavam milhões de pessoas e falavam centenas de línguas diferentes, domesticavam espécies vegetais, produziam alimentos e modificavam o ambiente em larga escala.
Uma das provas mais concretas desse manejo está no próprio chão. A chamada terra preta de índio é um solo escuro e muito fértil, encontrado em diversos pontos da Amazônia, associado a antigas áreas de ocupação humana. Em geral, aparece junto a vestígios como carvões e fragmentos de cerâmica e, ainda hoje, é valorizada por populações indígenas e ribeirinhas por manter produtividade por longos períodos.
Em campo, Neves conta que aprendeu na prática como esse manejo do solo tem técnica e observação fina. Ao lembrar uma escavação feita em 1999, na comunidade Lago do Limão, no Amazonas, ele relata que um morador pediu para a equipe parar de cavar porque “vocês estão remexendo muito a minha terra preta”. O motivo, diz o arqueólogo, não era só o buraco, mas o retorno do solo “sem o caco de cerâmica”. Segundo o morador, os fragmentos ajudam a reter a umidade, evitando que a terra encharque na chuva e rache na seca, uma explicação que Neves diz ter virado lição sobre por que a terra preta se mantém estável por séculos.
A castanheira é outro exemplo de como a floresta carrega escolhas humanas antigas. Neves chama atenção para o fato de que, no que a ciência conhece, há dois grandes dispersores da castanha, a cutia e a nossa espécie. Para ele, a presença de castanhais em vários pontos da Amazônia não pode ser lida apenas como acaso natural, mas como indício de circulação e manejo ao longo de gerações, numa paisagem em que plantas alimentares e árvores úteis foram sendo incentivadas e multiplicadas.
A mandioca, espécie crucial para alimentação brasileira até os dias de hoje, foi domesticada na Amazônia entre 8 mil e 10 mil anos atrás, e se espalhou pela região graças a uma complexa rede de comunicação e trocas. Foi assim com outros frutos de alto valor nutritivo, como a castanha-do-Brasil, a goiaba e diversos tipos de palmeiras frutíferas. O feijão e a abóbora, domesticados inicialmente nas partes baixas da Cordilheira dos Andes e nas América Central, viajaram milhares de quilômetros até serem cultivados na Amazônia, há mais de 5 mil anos.
“A história indígena na Amazônia é muito profunda”, afirma Neves. “A floresta amazônica é, em larga medida, o resultado de milhares de anos de uso humano.”
Para Mayara, essas descobertas demonstram que o modelo amazônico não apenas existia, como também era altamente sofisticado. “Cada vez mais a gente tem evidências do contrário daquele modelo imposto. A gente consegue conceber que esses modos de vida indígenas estavam conectados com o território e com a floresta de uma forma que rompe com essa caixinha determinista do que poderia ser Amazônia.”
Ao falar de bem viver como prática, Neves afirma que hoje existe “um conflito muito forte” entre “essa ontologia da abertura” e uma lógica contemporânea “baseada no controle absoluto”, descreve, ao contrapor a diversidade dos sistemas agroecológicos à monocultura. Para o arqueólogo, o bem viver passa pela convivência com a vida em múltiplas formas, não só pelas plantas cultivadas, mas pelos outros seres que compartilham o território.
Cidades antigas e redes complexas na floresta
As evidências arqueológicas mostram que a Amazônia pré-colonial não era formada apenas por pequenas aldeias isoladas. A floresta abrigou redes de ocupação densa, cidades organizadas, conexões entre territórios distantes e infraestrutura planejada em escala regional.
“Cidades não são sinônimo de pedra, de cimento, de ferro. Cidades são agrupamentos humanos com planejamento, com uso do espaço, com engenharia, com política”, afirma Eduardo Neves. Ele aponta que muitos desses traços urbanos estavam presentes em sociedades indígenas amazônicas muito antes da chegada dos europeus, ainda que suas materialidades tenham sido produzidas com outros elementos, como barro, madeira, palha, e a própria floresta. “Elas são diferentes das cidades ocidentais, mas cumprem funções semelhantes.”
Mayara Mariano reforça que é preciso romper com a ideia de que só há urbanismo onde há verticalização ou monumentalidade. “A gente enfrenta um grande desafio quando fala de cidades antigas, porque esse conceito costuma ser imediatamente associado ao modelo urbano ocidental. No contexto amazônico, porém, as formas de urbanismo se expressam por auto-gestão do território, com infraestruturas que integram a floresta e as demais aldeias por estradas, tecnologias próprias e modos de organização política.” Ela aponta que há registros de aldeias interligadas por estradas, com circulação de pessoas e bens, e que isso não é exceção: “Esses vestígios estão por toda a Amazônia.”
“A gente precisa lembrar que a Amazônia é muito grande, então existiram diferentes formas de urbanismo, de ocupação, de organização do território”, explica Mayara. Ela destaca que essas formas não eram nem homogêneas nem improvisadas. “Tem muita diversidade de projeto. E isso é justamente o que quebra esse mito da floresta sem civilização.”
Segundo Eduardo Neves, o que se vê hoje na floresta é apenas uma fração do que existiu. “Muito se perdeu com a violência da colonização. As estruturas orgânicas desaparecem, mas os solos, os padrões de ocupação, as tecnologias deixaram marcas que a arqueologia está conseguindo recuperar.”
Redes conectadas e gestão compartilhada
Ao falar de urbanismo amazônico, Neves recorre ao conceito de “cidades-jardim”, desenvolvido por pesquisadores que atuam em parceria com povos do Alto Xingu. A ideia, explica, é que esses arranjos urbanos não separavam a dimensão urbana da floresta ao redor, como se houvesse um “dentro” e um “fora” desconectados. Nessa lógica, a vegetação e os sistemas de produção de alimento não eram expulsos da cidade, mas faziam parte dela, em uma organização territorial que mantém a floresta por perto e, ao mesmo tempo, garante sustento e circulação.
“Nos últimos mil anos, os xinguanos conseguiram se organizar dentro de um território. Eram grandes aldeias, com uma organicidade própria, malocas organizadas em torno de uma praça central, áreas para manejo, para lixeiras, para agroflorestas”, descreve Mayara Mariano. “Essas aldeias estavam conectadas por grandes estradas. Ao contrário do que muita gente pensa, esses povos não estavam isolados. Existia conexão, e isso garantia uma forma de autogestão desse território.”
Eduardo Neves lembra que, no sul da Amazônia, já foram encontradas cerca de 50 dessas aldeias, muitas delas formando redes interligadas, com padrões que revelam planejamento territorial e interação contínua entre grupos distintos. “Há um princípio comum na forma como essas cidades são construídas”, afirma. “Elas seguem eixos cardeais, têm vias de circulação, áreas residenciais e zonas comuns. Isso é organização do espaço. Isso é política.”
Essas cidades não se impunham sobre a floresta, eram parte dela. A vegetação não era um obstáculo à ocupação, mas sim componente essencial do modo de viver. “Esse urbanismo amazônico é pensado a partir da floresta. Não é um urbanismo que elimina o que está ao redor”, diz Mayara. Para ela, é importante romper com o mito de que só há cidade onde há verticalização. “Cidade pode ser dispersa, pode ser baixa, pode ser integrada ao ambiente. É cidade do mesmo jeito.”
As populações da várzea amazônica também desenvolveram formas de habitar que dialogam com os ritmos do rio e com os ciclos da água. “Na região do Marajó, você tem um modo de vida anfíbio”, explica a pesquisadora. “As pessoas passam seis meses na terra firme e seis meses sobre as águas. Isso é uma lógica urbana baseada no ambiente, não contra ele.”
Essa convivência sofisticada com os extremos naturais está presente também nos sistemas hidráulicos antigos. Mayara destaca o exemplo dos tesos marajoaras, montículos de terra construídos em áreas alagáveis como estratégia de controle hídrico. “Muitas comunidades ainda usam práticas semelhantes para barrar igarapés e controlar o fluxo da água. Quando a gente mostra que isso já era feito há mais de mil anos, essas populações se reconhecem nesse saber.”
Ela destaca que esses territórios não eram “selvagens”, como a ideologia colonial tentou impor. “Quando a gente olha para essas paisagens do passado, vê um planejamento sofisticado, mas que não está baseado na destruição. São formas de viver que articulam diversidade, floresta e autonomia.”
Crise climática e caminhos de “bem viver” para as cidades do presente
A Amazônia de hoje vive uma contradição: ao mesmo tempo em que é apresentada como reserva estratégica para o planeta, também é um dos territórios mais afetados pelas mudanças climáticas. As cidades da região enfrentam aumento de temperaturas, estiagens prolongadas, chuvas intensas, inundações frequentes e desigualdades acentuadas por décadas de ausência de políticas públicas. Nesse contexto, as descobertas arqueológicas ganham ainda mais relevância, não apenas para recontar a história da floresta, mas para repensar o futuro.
“Essas cidades indígenas não eram antagônicas à floresta. Elas são um modelo de como é possível viver com o ambiente e não contra ele”, afirma Eduardo Neves. Para o arqueólogo, a principal contribuição da arqueologia da Amazônia está em revelar alternativas reais ao modelo urbano dominante, que frequentemente ignora os ciclos naturais e impõe lógicas de destruição. “Essas experiências do passado mostram que dá para pensar em outros futuros.”
Belém, que sediou a COP30 em 2025, é hoje uma das capitais mais vulneráveis da América Latina à crise do clima. Estudo divulgado por pesquisadores do jornal The Washington Post em parceria com a ONG CarbonPlan aponta que a cidade deve se tornar o segundo centro urbano mais quente do mundo até 2050, com projeção de até 222 dias de calor extremo por ano. A população periférica, com menos acesso a áreas verdes, água tratada e saneamento, já sente os efeitos: secas mais longas, escassez de alimentos, sensação térmica insuportável e alagamentos recorrentes.
Na avaliação de Mayara Mariano, natural de Belém e moradora da cidade, esses impactos climáticos não podem ser separados da maneira como o território foi historicamente ocupado. “A gente precisa enfrentar esse modelo de cidade que foi implantado aqui, que não dialoga com o ambiente e que reproduz desigualdades. As cidades indígenas mostraram que é possível viver com diversidade, respeitando os ciclos da água, do tempo, da floresta”, afirma.
Ela destaca que as soluções para o futuro podem e devem partir de quem vive nesses territórios. “Não é sobre voltar ao passado. É sobre reconhecer que os saberes que estão aqui há milênios ainda têm potência. O que a arqueologia está mostrando é que outras formas de vida sempre foram possíveis.”
Para Neves, pensar o bem viver hoje também implica traduzir essa lógica para o urbano, o que ele chama de “florestar as cidades”. Ao comentar exemplos de urbanismo amazônico antigo, ele afirma que a floresta “vivia dentro” dos arranjos urbanos, em vez de ser empurrada para fora. É a partir daí que defende um redesenho das capitais amazônicas que leve a sério rios, igarapés e marés, num exercício de “letramento paisagístico”. “Eu não consigo pensar num futuro para Belém que não contemple essa dimensão de ser uma cidade aquática”, diz. “A cidade tem que encontrar um jeito de dialogar… com essa vocação de ser uma cidade de esponja”, acrescenta, defendendo que ela precisa “se associar à água e não tentar lutar incessantemente contra a água”.
Mayara Mariano puxa essa mesma discussão para a política pública e insiste que, se o bem viver é um horizonte, ele precisa ser planejado: “talvez a modernidade é ancestral”, afirma, ao defender que essas tecnologias e modos de vida não podem ficar só no passado, mas virar ação concreta de adaptação.
Fonte: Brasil de Fato