Das pessoas negras é cobrado que acertem sempre, diz Ana Maria Gonçalves, autora de ‘Um Defeito de Cor’

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Passados quase 10 meses do carnaval, Ana Maria Gonçalves admite ainda estar em “processo de compreensão da grandiosidade que foi estar na Sapucaí”. A escritora premiada se refere ao livro dela, Um Defeito de Cor, que foi homenageado como tema do desfile da escola Portela neste ano.

O romance lançado em 2006 soma mais de 950 páginas e conta sobre Kehinde, uma mulher nascida no Reino de Daomé, atual Benin, é sequestrada e trazida escravizada a Salvador (BA).

“Ter o livro como inspiração do desfile da Portela foi extremamente importante para mim como escritora, porque ele furou a bolha da literatura, ele alcançou um público que ele nunca alcançaria se ele ficasse circulando nos meios que literatura”.

Segundo a própria escritora, o sucesso consequente do desfile atrasou os planos de publicar novas obras ainda este ano. “Ficou para o ano que vem”, revela em entrevista ao programa Bem Viver de terça-feira (26).

Nesses 18 anos desde o lançamento de Um Defeito de Cor, o livro não parou de vender e ser recomendando. Além de atores famosos como Lázaro Ramos e Humberto Carrão, a obra recebeu o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ainda em 2019, quando ele estava preso na Polícia Federal, em Curitiba (PR).

“Na época, ele me mandou uma mensagem através do Instituto Lula. Ele me escreveu lá de dentro e foi emocionante. Eu acho que eu fiquei uns três dias sem entender o que eu poderia responder”, lembra a escritora.

“Porque eu acho que ali, nessa leitura dele, nessas condições em que a leitura foi feita, ele personalizou muita coisa que eu acredito que a literatura é capaz de fazer. O livro conseguiu tirá-lo lá de dentro. E eu acho que é exatamente isso que a literatura faz, ela transporta a gente para outros mundos, [dos quais]a gente não tem acesso por condições adversas, como por exemplo, estar preso.”

Em Um Defeito de Cor, Kehinde enfrenta uma jornada para conseguir sua própria libertação do seu filho. Na Salvador do século 19, a personagem vira empreendedora comercializando diversos produtos, ao mesmo tempo em que se aproxima de um movimento revolucionário organizado por negros escravizados que ficou conhecido como Revolta dos Malês.

“Muita gente me questiona sobre algumas atitudes tomadas pela Kehinde: ‘Por que que ela fez isso? Por que que ela faz aquilo? Por que que ela tomou essa atitude? Por que que ela se juntou com essas pessoas?’”, comenta a escritora.

“Uma das intenções que eu tinha na construção da Kehinde é que ela fosse uma pessoa. As pessoas brancas num país racista são permitidas ao direito à individualidade. Ela erra, ela toma más decisões, isso vai ser cobrado e vai cair nas costas apenas dela”.

“Quando isso acontece com uma pessoa negra, isso cai nas costas de toda uma comunidade. São todos os negros que, de uma forma ou outra, vão pagar por um erro individual”.

“Tem uma expressão que eu tenho usado… A gente tem essa coisa do lugar de fala, né? Eu acho que a gente tem que começar a reivindicar o lugar de falha.”

Na última semana, a escritora participou do evento Ancestralidades: desafios ambientais e raciais, promovido pelo Itaú Cultural em parceria com a Fundação Tide Setúbal. Ao lado de Sueli Carneiro, a escritora entregou prêmios para 12 iniciativas de pessoas negras e indígenas por ações que tem relação ao debate climático

“São soluções que as comunidades quilombolas ou as comunidades negras ou comunidades indígenas podem trazer para esse diálogo que já passou da hora da gente ter, da gente achar alternativas e pensar em maneiras diferentes de tentar reverter esse grande desastre que a gente está fazendo aqui nesse planetinha azul.”

Confira a entrevista na íntegra

Já faz 10 meses desde o desfile da Portela. Como tem sido esse período?

A escola de samba é essa grande instituição negra brasileira, né? E a gente se esquece um pouco de pensar sobre o que significa esse nome: Escola de samba.

E pensar em quantas coisas a gente aprendeu, eu pelo menos, aprendi através de desfiles de escola de samba, da história de Brasil, de personagens e biografias.

Ter o livro como inspiração do desfile da Portela foi extremamente importante para mim como escritora, porque ele furou a bolha da literatura, ele alcançou um público que nunca alcançaria se ele ficasse circulando nos meios que literatura.

Eu ainda não digeri, é um processo que eu ainda vou entendendo a grandiosidade que estar ali na Sapucaí, contando essa história para uma audiência que eu nunca imaginei ter.

Uma das personalidades que leu seu livro e recomendou publicamente foi o presidente Lula. Como foi isso?

Na época, ele me mandou uma mensagem através do Instituto Lula. Ele me escreveu lá de dentro [do presídio], ou seja, um bilhete que foi transmitido pelo Instituto. E foi emocionante.

Eu acho que eu fiquei uns três dias sem entender o que eu poderia responder.

Porque eu acho que ali, nessa leitura dele, nessas condições em que a leitura foi feita, ele personalizou muita coisa que eu acredito que a literatura capaz de fazer.

Ele, nesse bilhete, falava que durante o tempo de leitura, o livro conseguiu tirá-lo lá de dentro. E eu acho que é exatamente isso que a literatura faz, ela transporta a gente para outros mundos, um mundo que a gente às vezes nem imagina que possa existir, ou um mundo que a gente imagina que existe, mas do qual não tem acesso por condições adversas, como por exemplo estar preso.

É o que a gente sempre diz que a literatura liberta.

E esse bilhete do Lula dizendo do livro, dizendo das condições em que ele leu, no momento em que ele leu, para mim, personificou tudo isso que eu acho que a literatura pode fazer.

A senhora acredita que há uma diferença na concepção sobre combate ao racismo e politicas antirracistas nesta terceira gestão Lula em relação às anteriores?

A gente ainda está em um processo de muito vai e volta. Em determinados momentos você tem uma conquista, avança algumas casinhas e logo em seguida você tem que voltar atrás e se reagrupar, ou seja, perde essas casinhas que foram conquistadas.

Mas é um processo, talvez seja esse o processo, eu não sei.

A gente realmente nunca conseguiu chegar num patamar que a gente acha que tem que chegar para que se possa falar de igualdade, de uma sociedade que esteja realmente implicada em tirar de circulação pensamentos racistas, machistas, xenofóbicos, enfim.

O governo pode apontar determinado caminho, mas nesse caminho ele derrapa em muitas coisas.

Mas eu acho que a gente ainda está muito longe de se entender como é que vai avançar nessas políticas, porque a gente encontra inclusive problemas para avançar dentro da própria esquerda, que fala que quando a gente quer pautar racismo, quer pautar machismo, quer pautar transfobia, são pautas divisivas dentro da própria esquerda.

É difícil avançar de forma única, talvez, na verdade, sejam muito caminhos. Mas não tenho dúvida que precisamos bancar a atuação e luta dos movimentos.

Porque são os movimentos que, com certeza, fazem com que a esquerda continue esquerda.

Se não fosse movimento negro, se não fosse movimento LGBT, se não fossem outros tantos movimentos, a esquerda estaria hoje muito mais à direita do que já está.

Qual mensagem a senhora acredita que a trajetória de Kehinde transmite para os e as leitoras?

Muita gente me questiona sobre algumas atitudes tomadas pela Kehinde: “Por que que ela fez isso? Por que que ela faz aquilo? Por que que ela tomou essa atitude? Por que que ela se juntou com essas pessoas?”.

Uma das intenções que eu tinha na construção da Kehinde é que ela fosse uma pessoa.

As pessoas brancas num país racista são permitidas ao direito à individualidade. Ela erra, ela toma más decisões, isso vai ser cobrado e vai cair nas costas apenas dela.

Quando isso acontece com uma pessoa negra, isso cai nas costas de toda uma comunidade. São todos os negros que, de uma forma ou outra, vão pagar por um erro individual.

Tem uma expressão que eu tenho usado… A gente tem essa coisa do lugar de fala, né? Eu acho que a gente tem que começar a reivindicar o lugar de falha.

Kehinde comete os erros dela, ou seja, ela tem todos os direitos de como ser humano de acertar e errar.

Principalmente as mulheres negras, de quem é muito cobrado de que se acerte sempre, de que se prepare mais. E ficar nessa preparação muitas vezes impede a gente de ir para ação, porque a gente acha que a gente nunca é preparada, nunca sabe o suficiente, nunca é boa o suficiente, nunca merece o suficiente.

Por realmente saber que, às vezes, a gente tem uma única tentativa de acertar. Se errar, nunca mais você vai ganhar uma oportunidade igual àquela.

Programa Bem Viver/ Brasil de Fato

 

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Fonte: Brasil de Fato

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