Racismo impacta profundamente a saúde mental de pessoas negras, diz psicanalista

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Nas últimas semanas, casos de racismo e o acirramento de discurso de ódio reacenderam o debate sobre a saúde mental da população negra no Brasil e no mundo. Os episódios de discriminação racial contra uma estudante de 15 anos do Colégio Mackenzie, em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, e contra a trabalhadora Gabriella Barros, de 21 anos deram ainda mais relevância ao tema.

No início do mês de maio, uma aluna do Colégio Mackenzie foi encontrada desacordada no banheiro do colégio após sofrer ataques racistas e bullying por colegas desde o ano passado.

Nesta semana, Gabriela Barros foi às redes sociais para denunciar o racismo sofrido dentro da empresa em que trabalhava por usar tranças no cabelo. Ela foi demitida por sua chefe, que afirmou ser “regra da empresa” não permitir tranças. Gabriela entrou com ação na Justiça do Trabalho de Alagoas.

Em entrevista ao Portal CUT, a psicóloga e psicanalista Maria Lúcia da Silva, avalia a forma como o racismo tem impactado a saúde mental da população negra, gerando sofrimentos como abalos psicológicos, estresse crônico, vulnerabilidade emocional, ansiedade, depressão e síndrome do pânico. (Leia integra da entrevista abaixo).

Segundo dados do Ministério da Saúde, o índice de suicídio entre adolescentes e jovens negros no Brasil é 45% maior do que entre brancos. O levantamento aponta ainda que o risco aumentou 12% entre a população negra, nos últimos anos e permaneceu estável entre brancos.

Pessoas negras de 10 a 29 anos são que mais sofre, principalmente os do sexo masculino, cuja a chance é 50% maior de tirar a vida do que brancos da mesma faixa etária. Os dados são preocupantes e chamam a atenção, mas qual seria a principal causa e porque as pessoas negras são mais vulneráveis?

Na entrevista a seguir, Maria Lúcia, que também é cofundadora e integrante do AMMA Psique e Negritude: Pesquisa, Formação e Referência em Relações Raciais e da Articulação Nacional de Psicólogas Negras e Pesquisadoras, responde essas questões.

Confira abaixo:

Portal CUT: Os episódios recentes de racismo como o da aluna do Colégio Mackenzie, encontrada desacordada no banheiro, levantaram o debate sobre o adoecimento da população negra diante de casos de discriminação. Como o racismo estrutural afeta a saúde mental de pessoas negras?

Maria Lúcia: O racismo estrutural atravessa todos os aspectos da vida social — da moradia à educação, da saúde à justiça, como dizer que estamos – e impõe uma carga constante de estresse psíquico às pessoas negras. Não se trata apenas de episódios isolados de discriminação, mas de um modo contínuo de existir em uma sociedade que nega humanidade, voz e pertencimento.

O sujeito negro é muitas vezes interpelado não como sujeito de desejo, mas como objeto de projeções coloniais e violentas, o que gera marcas psíquicas profundas, vividas como humilhação, silenciamento, hipervigilância e medo. A saúde mental, nesse contexto, não pode ser pensada fora das relações de poder racializadas.

Portal CUT: Quais são os principais transtornos mentais associados ao racismo?

Maria Lúcia: A literatura e a clínica apontam a prevalência de transtornos como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, transtorno de estresse pós-traumático e sofrimento psíquico difuso, muitas vezes não nomeado. No entanto, o que muitas vezes se nomeia como transtorno individual pode ser a expressão de uma dor histórica e coletiva.

O racismo age como um trauma crônico, considero que “cada criança negra que nasce já vem inscrita com significados que o racismo produziu; poderíamos dizer que as pressões raciais já se iniciaram e estão inscritas, umbilicalmente, naquilo que esta criança traz para sua existência material e emocional”.

Portal CUT: Como o racismo internalizado se manifesta e qual seu impacto na autoestima?

Maria Lúcia: O racismo internalizado opera quando a pessoa negra incorpora as imagens, discursos e valores da branquitude como parâmetro de valor. Isso pode se manifestar em autodepreciação, desejo de embranquecimento, vergonha da própria história, da própria aparência ou da ancestralidade. A autoestima, nesse caso, não é apenas individual, mas um terreno simbólico onde se joga a luta por reconhecimento.

Como nos ensina Fanon, o negro, ao se ver pelos olhos do colonizador, muitas vezes adoece por não se reconhecer como sujeito pleno. A clínica com pessoas negras ao escutar esses atravessamentos, tem podido reabrir caminhos de reconstrução concreta, simbólica e reparação, tendo como parâmetro as heranças históricas que as ações políticas tem possibilitado resgatar.

Portal CUT: Nesta semana, uma jovem foi vítima de discriminação racial na empresa em que trabalhava por usar tranças. Ela denunciou o caso nas redes sociais. Como o preconceito racial no ambiente de trabalho ou escolar contribui para o adoecimento mental?

Maria Lúcia: Ambientes como escolas e locais de trabalho são espaços fundamentais de socialização e pertencimento. Esses lugares tem sido um espaço de reprodução de uma lógica do silenciamento, da exclusão e ou do isolamento racial, tornando-se dispositivos de sofrimento.

Crianças e jovens negros que escutam comentários racistas, que são invisibilizados ou hiperexpostos por sua cor, podem viver experiências que produzem sentimentos de inadequação e insegurança. A jovem do Mackenzie não adoeceu por fragilidade, mas por sobrevivência em um ambiente hostil e de intolerância com os diferentes. A repetição cotidiana de microagressões e exclusões é tão ou mais devastadora que os ataques explícitos.

Portal CUT: Quais políticas públicas são necessárias para garantir saúde mental adequada à população negra?

Maria Lúcia: É urgente que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra seja reconhecida e que os cuidados, pautados pela política de saúde mental reconheça o racismo como determinante social do sofrimento psíquico. Isso implica:

. Formação antirracista dos profissionais de saúde. • Inserção de psicólogas e psicanalistas negras nos espaços públicos de atendimento.
. Programas específicos de cuidado para juventudes negras, especialmente em territórios vulnerabilizados.
. Articulação entre saúde, cultura e ancestralidade — entendendo que espiritualidade, oralidade e coletividade são também caminhos de cura.

E que a política pública seja pautada pelo cuidado e acolhimento de todas as vozes, cores e corpos na produção do saber e nas decisões institucionais.

Portal CUT: Qual o papel das escolas na prevenção dos sofrimentos mentais e psíquicos relacionados ao racismo?

Maria Lúcia: A escola tem o dever de ser espaço de construção simbólica, e não de aniquilação subjetiva. É urgente a:

. Implementação da Lei 10.639/03 de forma viva, com histórias negras, epistemologias africanas e saberes quilombolas.
. Formar educadores para lidar com questões raciais com seriedade, escuta e ação.
. Criar protocolos de acolhimento para situações de racismo — com cuidado psicológico e responsabilização institucional. O silêncio da escola diante do racismo é cúmplice da violência e da produção de traumas.

É preciso transformar a escola em espaço de memória e existência.

Portal CUT: Como o sistema de saúde pode se tornar mais antirracista?

Maria Lúcia: Tornando-se capaz de escutar o sofrimento racial sem patologizá-lo ou individualizá-lo. É preciso romper com a suposta neutralidade racial, que ao ignorar o sujeito negros, perpetua o silenciamento. O antirracismo na saúde exige:

. Prontuários que reconheçam o impacto do racismo como sintoma.
. Protocolos de escuta que levem em conta contextos históricos.
. Criação de espaços de supervisão para todos os profissionais e cuidado para com os profissionais negros, que também sofrem com o racismo institucional.

Portal CUT: Qual a importância da psicoeducação sobre racismo para profissionais da saúde?

Maria Lúcia: Sem essa formação, o profissional corre o risco de reproduzir a violência racial dentro da escuta clínica. A psicoeducação é essencial para:

. Nomear o racismo como produtor de sintomas.
. Reconhecer o lugar de privilégio branco na clínica.
. Evitar a retraumatização de pacientes negros ao negar ou minimizar suas experiências.
. Construir dispositivos clínicos que sustentem escutas complexas, onde o trauma racial, o inconsciente histórico e a herança escravocrata possam aparecer.

A formação antirracista não é um “extra”, mas um fundamento ético e técnico da prática em um país marcado por séculos de escravização e exclusão.

Portal CUT: Como movimentos sociais e coletivos negros contribuem para a saúde mental da comunidade?

Maria Lúcia: Eles são fontes de vida, reparação e reconstrução material e simbólica de nossa história. Ao nomear o racismo saímos da solidão, produzimos conhecimento, pertencimento e políticas de enfrentamento e afirmamos nossa a dignidade enquanto coletivo.

Os coletivos são também espaços de elaboração coletiva dos traumas históricos, onde a dor encontra linguagem, escuta e memória. As experiências sofrimento produzido pelo racismo, quando compartilhados coletivamente possibilitam investigação, produzem memória — e não em silêncio.

 

Fonte: CUT Brasil

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