Senado aprova PEC em afronta ao STF e ao direito indígena

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O reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas aos seus territórios é uma questão de justiça

A luta pela demarcação de terras indígenas atingiu um ponto de máxima tensão com o Legislativo e o Judiciário atuando simultaneamente sobre o tema do marco temporal. A ofensiva liderada pelo Congresso Nacional, que aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional 48 (PEC) na véspera do novo julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), reforça a importância de proteger os territórios indígenas, não apenas como a estratégia mais eficaz para o enfrentamento da crise climática, mas principalmente como mecanismo fundante às necessárias políticas de reparação a um processo de violência estatal documentada.

Enquanto a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) segue na resistência, denunciando o retrocesso imposto, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirma que o direito indígena é anterior ao próprio Estado e decorre da ocupação tradicional e não de critérios de posse civil ou de marcos cronológicos arbitrários.

PEC do retrocesso é aprovada no Senado

Em um ato de tensão institucional, o Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 48/2023 em votação acelerada nesta terça-feira (9), um dia antes de o Supremo Tribunal Federal iniciar a nova sessão de julgamento sobre o mesmo tema.

A PEC, que segue agora para a Câmara dos Deputados, estabelece o marco temporal como critério para a demarcação, definindo que os povos indígenas só teriam direito às áreas que estivessem ocupadas ou em disputa até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Essa proposta ignora a história de violência e expulsão de diversos povos de suas terras antes dessa data, deixando-os sem respaldo jurídico.

A APIB publicou uma nota em que manifesta total repúdio às ações anti-indígenas no Congresso Nacional, classificando a PEC 48 como uma “PEC da Morte”, que foi aprovada sem a apreciação da CCJ e em desacordo com decisões já firmadas pelo STF. Segundo a APIB, a PEC promove uma reestruturação profunda do regime constitucional das terras indígenas e institucionaliza a negação de direitos.

A Ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, manifestou profunda indignação com a aprovação da PEC 48, classificando a ação como um ataque à democracia: “Essa PEC representa um profundo retrocesso para a democracia brasileira ao impor 1988 como referência para a demarcação de territórios. Querem apagar nossa história e silenciar nossos direitos, mas seguiremos lutando para garantir que a justiça, a Constituição e a vida prevaleçam”.

A especialista em indigenismo da Funai e secretária de comunicação da Condsef-CUT, Mônica Carneiro, reforça que a Constituição de 1988 é clara em relação ao tema: “A Constituição afirma categoricamente que os povos indígenas têm o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. E não permite que esses direitos sejam relativizados por oportunismos políticos e econômicos”.

A Secretária Nacional de Meio Ambiente da CUT Brasil, Rosalina Amorim, criticou a manobra legislativa que visa favorecer interesses predatórios: “A aprovação dessa PEC é uma tentativa de passar por cima da Constituição, esvaziando a Justiça e enfraquecendo direitos fundamentais de quem sempre protegeu este país. Essa ação se configura como uma ofensiva política contra os direitos indígenas, para favorecer a grilagem, o desmatamento e o lucro de poucos às custas da vida de muitos, especialmente dos povos indígenas”.

STF julga ofensiva contra a demarcação de terras indígenas

Concomitantemente à aprovação da PEC 48/2023 pelo Senado, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou na quarta-feira (10) o julgamento de quatro ações que questionam a constitucionalidade da Lei 14.701/2023. Essa lei, aprovada pelo Congresso em 2023, validou a regra do Marco Temporal, ignorando a decisão anterior do STF que havia considerado a tese inconstitucional.

A defesa dos direitos indígenas sustenta que os direitos territoriais são direitos fundamentais e reconhecidos como cláusulas pétreas, sendo insuscetíveis de retrocessos ou mutabilidade constitucional por conveniência do legislador. A Lei 14.701/2023 impõe dificuldades significativas no procedimento demarcatório, que já é complexo, dificultando o cumprimento do mandamento constitucional. Segundo a Funai, a regularização de 304 terras indígenas foi afetada durante o período em que a antiga lei esteve vigente.

Em sua nota, a APIB afirma que a luta pela garantia de demarcação e proteção das terras indígenas é constante e, apesar dos retrocessos promovidos pelo Congresso, reitera sua confiança no STF, reivindicando que no julgamento de 10 de dezembro seus ministros:

  1. Mantenham a inconstitucionalidade do marco temporal, conforme decidido no Recurso Extraordinário (RE) nº 1.017.365 (caso do povo Xokleng, Tema 1031);
  2. Garantam a ampla participação indígena do início ao fim do julgamento;
  3. Declarem a inconstitucionalidade integral da Lei 14.701/2023;
  4. Reafirmem a proteção das terras indígenas como pilar para a vida, a cultura e o clima, em benefício de toda a sociedade e da Mãe-Terra.

A indigenista e sindicalista Mônica Carneiro afirma que a lei é explicitamente prejudicial e contrária à deliberação da Corte: “A Lei 14.701 contraria a decisão do próprio STF de 2023, viola o sistema de proteção constitucional dos territórios indígenas, esmaga direitos fundamentais, incentiva conflitos e violência”. Ela também critica as consequências administrativas: “A lei coloca em suspeita o trabalho dos servidores públicos da Funai, que atuam no estrito desempenho de suas funções para realizar a correta identificação e delimitação de territórios que o Estado brasileiro tem a obrigação legal de demarcar”.

A sessão no STF nesta quarta-feira (10) foi dedicada às sustentações orais das partes envolvidas. A data da votação dos ministros sobre a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 será marcada posteriormente, procedimento adotado para julgamentos de grande relevância para o país.

Por que a demarcação importa

As terras indígenas abrangem cerca de 13,8% do território nacional e registram um índice de desmatamento inferior a 3% do total detectado no Brasil. Os povos indígenas representam apenas 5% da população mundial, mas são responsáveis por proteger 80% da biodiversidade do planeta.

A Secretária Nacional de Meio Ambiente da CUT Brasil, Rosalina Amorim, sintetiza a urgência da questão: “Demarcar terras é enfrentar a crise climática com justiça social: proteger a Floresta Amazônica, o Cerrado, o Pantanal e tantos outros biomas é também proteger o futuro de todas e todos nós”.

A indigenista e secretária de comunicação da Condsef-CUT, Mônica Carneiro, enfatiza a posição dos especialistas em indigenismo e demais trabalhadores da Funai frente ao cenário legislativo e jurídico: “Repudiamos por completo todas essas iniciativas e seguiremos em solidariedade irrestrita aos movimentos indígenas, em defesa de seus direitos territoriais, da declaração da inconstitucionalidade total da Lei 14.701/2023 e trabalhando pela derrota da PEC 48”.

A mobilização da APIB e seus aliados em Brasília demonstra que a luta contra o Marco Temporal e qualquer retrocesso legislativo contra os povos indígenas são, fundamentalmente, a defesa da vida, da cultura, do meio ambiente e da Constituição brasileira.

Fonte: CUT-Brasil

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