Transplantes no SUS: entre a excelência e as desigualdades

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Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) tenha consolidado o Brasil como uma referência global na área de transplantes, desde a década de 1990, o país ainda enfrenta obstáculos consideráveis e persistentes, que emperram as garantias de acesso.

No ano passado, foram realizados mais de 30 mil procedimentos, o que representa recorde histórico e reafirma o título de nação que mais realiza transplantes em um sistema público de saúde do planeta.

O resultado representa um aumento de 18% em relação a 2022 e é o maior desde a implementação do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), em 1997. A abrangência do SUS no setor é substancial. Atualmente, a saúde pública financia mais de 85% de todos os transplantes realizados em território nacional.

Além de custear procedimentos de altíssima complexidade, como transplantes de órgãos sólidos, tecidos, córneas, pele e medula óssea, o sistema fornece integralmente os medicamentos imunossupressores, essenciais para toda a vida dos pacientes transplantados.

Apesar desses marcos impressionantes, a longa espera por órgãos é um desafio permanente. Mais de 78 mil pessoas estão na fila. Em 2024, os órgãos mais demandados foram rim (42.838), córnea (32.349) e fígado (2.387).

Em conversa com o podcast Repórter SUS, a professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Dayani Galato destaca que a fila de espera por órgãos é ainda maior do que os números oficiais indicam, devido à falta de equipes de transplante distribuídas por todo o país.

“Hoje, para uma pessoa ser listada para receber um órgão, ela precisa ser, inicialmente, avaliada por uma equipe de transplante, e nós não temos equipes de transplante distribuídas em todo o Brasil. Então, é bem provável que se houvesse uma distribuição em todo o Brasil, teríamos uma necessidade muito maior de órgãos do que esses 78 mil. Estamos falando de um problema que possivelmente é maior.”

Autorização da família

Outro gargalo significativo é a alta taxa de recusa familiar à doação de órgãos, um fator crucial, pois o processo formal de doação só pode ter início com a autorização da família, mesmo que o indivíduo tenha manifestado o desejo em vida.

Em 2024, 45% das solicitações de doação foram rejeitadas por parentes, um número consideravelmente maior quando comparado, por exemplo, às taxas da Espanha, que ficam entre 8% e 10%. A professora Dayani Galato aponta para a necessidade de uma revisão na legislação brasileira e de maior conscientização da população.

“No Brasil, nós temos uma legislação que obriga a autorização familiar. Na nova identidade, você declara se é doador de órgãos ou não. No entanto, após o óbito, você ainda precisa da autorização da família. Muitas vezes, a pessoa gostaria de doar os órgãos, e a família desconhece esse desejo e aí, temos a recusa. Uma mudança que poderíamos buscar é na legislação”, pontua a pesquisadora na entrevista ao podcast.

Desigualdades no acesso

A distribuição de Centros Transplantadores (CTs) no território brasileiro também é um problema, por não ser heterogênea, o que acentua as desigualdades no acesso ao tratamento.

Há uma concentração de CTs nas regiões Sudeste e Sul, enquanto a região Norte não possui nenhum CT para Transplante de Células-Tronco Hematopoiéticas (TCTH), por exemplo. Essa heterogeneidade geográfica pode resultar em iniquidades no acesso. A professora Dayani Galato detalha a gravidade dessa desigualdade regional, especialmente para órgãos como o pulmão.

No total, 12 das 27 Unidades Federativas (44,4%) do Brasil não oferecem o TCTH à população, obrigando pacientes a se deslocarem por grandes distâncias para ter acesso ao tratamento.

Mesmo o programa Tratamento Fora do Domicílio (TFD) para subsidiar despesas de transporte e estadia apresenta limitações, pois, muitas vezes, não é suficiente para cobrir os altos custos e o impacto social, físico e psicológico do afastamento familiar e das atividades cotidianas.

Tratamento de longo prazo

A lista de desafios inclui também a adesão aos tratamentos posteriores ao transplante. O sucesso a longo prazo dos procedimentos depende fundamentalmente da qualidade dos cuidados pós-operatórios, incluindo a adesão rigorosa a medicamentos imunossupressores e a possibilidade de mudanças no estilo de vida.

Essa adesão depende de condições financeiras, sociais e até de tempo para exercícios físicos, novos cuidados com a dieta e outros fatores, que podem parecer simples, mas muitas vezes são inalcançáveis para famílias de baixa renda. A professora Dayani Galato enfatiza a importância da atenção primária nesse processo.

“Eu costumo dizer que é um paciente da atenção primária que usa imunossupressor. Em países como os Estados Unidos, depois do transplante, o paciente é devolvido à atenção primária. Já no Brasil, ele continua sendo assistido pela equipe do transplante. O que observamos na área é que precisamos melhorar a formação.”

Como a maior parte dos gargalos do SUS, as melhorias no setor de transplantes dependem diretamente do fim das desigualdades estruturais. Especificamente nesse campo, no entanto, elas também necessitam de mudanças culturais no debate sobre a morte e a finitude.

Dayani Galato ressalta ainda que, além desses fatores, a prevenção é uma ferramenta essencial para mudar o cenário. “Aquela fila de espera que mencionamos, com 70 a 80 mil pessoas e que talvez seja maior, poderia ser menor se pensássemos em prevenção e em doenças sensíveis à atenção primária. É por aí que se começa”, conclui.

 

Fonte: Brasil de Fato

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