Evidências e narrativas: a pressa é inimiga dos progressistas

0

Por Marcio Pochmann*

As duas primeiras décadas do presente século trazem consigo narrativas abstratas que prejudicam o entendimento adequado de evidências empíricas que apontam transformações no interior da sociedade brasileira, comprometendo atuação e desempenho político do progressismo. Enquanto a fase de expansão econômica nos anos 2000 coincidiu com o avanço da vertente da “nova classe média”, a fase do declínio econômico na década de 2010 solidifica a hipótese da “classe média privilegiada e detentora de ódio aos pobres”.

A fabricação recente de conceitos e teorizações mediadas por leitura apressada de estatísticas públicas conjunturais tem sido acompanhada, todavia, por sua efemeridade explicativa, diferentemente das interpretações de autores clássicos como, por exemplo, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre e Raymundo Faoro. Possivelmente porque se mostram, em grande medida, invenções frágeis a respeito da realidade, ainda que indiquem deter valor simbólico a capturar atenções e mobilizar temporariamente interesses políticos e projetos econômicos objetivos.

A real ascensão na base da pirâmide social ocorrida durante a expansão econômica nos ano 2000 compreendida em perspectiva com o surgimento de “nova classe média” levou, por exemplo, a equívocos políticos importantes. De um lado, pela formatação de políticas públicas de consumo deslocadas da necessária politização, diferentemente da tradição programática includente de ações organizativas adotadas no interior das classes trabalhadoras.

De outro lado, pelo acomodamento burocrático gerado nas instituições de representação de interesses como partido, sindicato e associações estudantis e de moradores, todas desconectadas, em maior ou menor medida, da efervescência de riscos, inseguranças e demandas mobilizadoras no interior do conjunto das classes trabalhadoras em transformação.

Por conta disso, a abertura de lacunas políticas seguiu cada vez mais agenciada por clientelas associadas a teologias da prosperidade, milícias e crime organizado.

Para além disso, percebe-se também que o encerramento da década de 2010 demarcada pela decadência econômica vem sendo acompanhado do avanço de vertente teórica a apontar a “classe média detentora de privilégios e de ódio aos pobres”, o que parece potencializar novos e graves erros de natureza política.

Diante do avançado processo precoce da desindustrialização nacional, as ocupações intermediárias terminaram sendo as mais atingidas negativamente com a substituição do emprego assalariado de garantias formais pela desassistência da condição de PJ (contrato de Pessoa Jurídica na forma de autônomo, conta própria, independente e intermitente).

Enquanto politizavam-se os sinais de mobilidade descendente das classes médias, assistia-se ao fortalecimento da ascendência social despolitizada dos segmentos situados na base da pirâmide durante as duas primeiras décadas do século. No período de crescimento econômico dos anos 2000, por exemplo, 95% da mobilidade social concentraram-se nas camadas empobrecidas da população que respondia por cerca de 4/6 dos brasileiros.

Com o declínio econômico, acentuado desde a recessão instaurada a partir de 2015, a regressão social só se fez generalizar, ultrapassando os limites instalados no interior da classe média para a massa empobrecida da população, excetuando-se, como de praxe, a trajetória concentradora da renda, riqueza e poder entre os mais ricos no país.

Diante disso, a hipótese da “classe média detentora de privilégios e de ódio aos pobres” distorce a realidade, fragmenta e polariza ainda mais segmentos sociais heterogêneos que se encontram submetidos simultaneamente ao atual processo de regressão socioeconômica.

A constituição de nova maioria política pelo campo progressista que permita reverter o atual governo da destruição nacional pressupõe outra perspectiva teórica. Como sempre, o erro de diagnósticos incapaz de diferenciar a essência da aparência, tende a reproduzir, por consequência, prognósticos descontextualizados que agravam, em geral, ainda mais o problema pelo qual deveriam solucionar.

Talvez por isso que Karl Marx segue atual, quando destacou, ainda no século XIX, que “se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária”.

*Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil

 

Fonte: Rede Brasil Atual

Comments are closed.