Por Felipe Nunes*
A ida da história do poeta, político e guerrilheiro baiano Carlos Marighella as telas do cinema brasileiro, dirigido por Wagner Moura, e a escolha do canto e ator Seu Jorge para o papel do inimigo número um da ditadura militar suscitou polêmicas recorrentes no racismo à brasileira, ou como bem definiu a antropóloga Lélia Gonzalez, sintomas da neurose cultural brasileira. Em um país fundado a partir das lentes da miscigenação racial, a qual não buscava reparar as profundas desigualdades oriundas das bases fundacionais escravocratas em nosso país, e sim erguer pontes ilusórias para a população negra de que era possível se aproximar da branquitude, enegrecer ainda mais um personagem negro da nossa história causa alvoroço e estremece os alpendres da Casa Grande.
O mais comum dentro dos processos de representação histórica no Brasil perpassava por operações de branqueamento de figuras negras históricas, como ocorreu com Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga e tantas outras personagens. Como bem descreve o filósofo camaronês Achille Mbembe, a raça não existe enquanto fato natural físico, mas enquanto uma construção fictícia útil de dominação de um sujeito sobre o outro.
Para além de um efeito perceptivo, o racismo opera enquanto “afeto, instinto e speculum, a raça tem de se transformar em imagem, forma superfície, figura e, sobretudo, imaginário”. O racismo constrói estereótipos e estigmatizações em torno das populações negras, como também busca excluir qualquer tipo de representação de negritude dentro do imaginário social. O Brasil alicerçado pela escravidão alimentou o mito da democracia racial por meio da figura do “mestiço”, lugar confortável para elites excluírem da história brasileira os personagens negros/as.
Não por acaso, como cita o historiador Clóvis Moura a partir do censo realizado em 1980, nada menos que 136 “cores” distintas foram identificadas para descrever tons de pele não-brancos no Brasil, uma fuga criada pelo projeto de embranquecimento afastar os não-brancos da sua identidade.
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Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) surge e realiza um esforço para elaborar na consciência social da população de pretos, pardos, mestiços, dentre outras identificações para não-brancos, a necessidade da afirmação de sua negritude. Uma das consequências práticas do mito da democracia racial, como nos lembra Lélia, é o estilhaçamento, fragmentação da identidade racial, logo, a negação da cor, da própria cultura.
Por outro lado, como destaca a professora Mara Viveros Vigoya, ao nomearmos a branquitude enquanto um modelo identitário, estamos deslocando esse lugar de neutralidade e posicionando os efeitos de dominação racial provocado pela ideologia do embranquecimento fundado sobre a imagem do branco enquanto “norma” ou “cor ideal”.
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A criação do Dia da Consciência Negra, no 20 de novembro, no mesmo dia em que Zumbi tombou resistindo e defendendo o quilombo dos Palmares da invasão dos bandeirantes, é tomar para si a tarefa histórica invocada pela experiência do aquilombamento. “Nascer negro é consequência, ser negro é consciência”, disse Zumbi.
Diante das tentativas incansáveis da branquitude em seduzir, dispersar, dividir as populações negras, enegrecer o Brasil, se constitui num dos grandes desafios para dinamitar as bases estruturais racistas de nosso país.
Por fim, cito a canção de Emicida “Principia”, do verbo principiar, início, começo, partida, “Tudo que nós têm é nós!”. O primeiro passo da luta antirracista é tornar-se negro, lembrando Neusa Santos Souza, e assim, unir negros e negras na luta contra o racismo.
*Felipe Nunes é poeta, compositor, historiador, antropólogo e doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRN. Compõe também o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: Brasil de Fato