Vannuchi: “vontade da classe trabalhadora” à OEA

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Eleito recentemente para uma das vagas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), o ex-ministro do governo Lula, Paulo Vanucchi afirmou que seu papel será o de exigir “diálogo e equivalência” a partir do compromisso com a democracia, que é a vontade da maioria. “E a vontade da maioria nos nossos países é a vontade dos segmentos mais pobres, da classe trabalhadora, do movimento sindical, dos sem-terra, dos sem-teto”, sublinhou.

Em entrevista ao Portal do Mundo do Trabalho, o veterano combatente disse que aceitou o convite para assessorar a Comissão Nacional de Memória, Verdade e Justiça da Central Única dos Trabalhadores, pois acredita que “não esquecer o passado é sobretudo não esquecer do futuro” e o movimento sindical deve dar uma grande contribuição neste sentido, a partir do resgate da memória histórica de seus combatentes e heróis que enfrentaram a ditadura. “O Brasil até agora não deu um passo para, na sua educação básica, ensinar as crianças que houve 21 anos de repressão, censura, violência contra juventude contra os que resistiram a um regime ditatorial”.

Sobre os relatórios da Comissão de Direitos Humanos da OEA, Vannuchi defendeu que “precisam valorizar mais os avanços no combate à fome, as políticas de distribuição de renda e colocar temas como o da liberdade de expressão”, condenando a “seletividade” usada por alguns governos para fazer disputas “políticas e geopolíticas”. “Os Estados Unidos não podem fazer pressão sobre Cuba ou Venezuela em torno deste ou daquele problema relativo aos direitos humanos enquanto eles próprios têm questões como Guantánamo, racismo, violência, exclusão de segmentos latino-americanos lá residentes e o seu sistema prisional”. No tema das práticas antissindicais, acrescentou “há experiências como a da empresa Nissan, do Mississipi, e muitas outras, em que chega ao ponto do ex-presidente da República George Bush visitar a fábrica e cumprimentar os trabalhadores por não terem aceitado a sindicalização”.

Comprometido com a pluralidade na comunicação, o representante brasileiro acredita que a Comissão pode recomendar “em nome dos direitos humanos, que as legislações permitam uma democratização do acesso aos meios eletrônicos e de papel”, lembrando que a campanha desenvolvida pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) representa unicamente os interesses empresariais, que não podem se sobrepor aos de todos os demais. “A SIP é responsável por décadas de governos ditatoriais. Ela fez propaganda do golpe de 64, os seus órgãos brasileiros, o jornal ‘O Globo’ e outros apoiaram o golpe, defenderam todas as suas políticas, encobriram a tortura. Não podem vir agora invocar uma ‘liberdade de imprensa’ quando se trata de um confronto entre autoridades políticas mandatadas pelo voto popular, que com base nas constituições legitimas de cada país adotam mudanças, marcos regulatórios. E, sobretudo, a Comissão não pode trabalhar uma ideia de liberdade de expressão sem promover em todos os países mudanças legislativas”. VVannuchi destaca a necessidade de ampliar a pluralidade nos meios de comunicação, a fim de que mais vozes possam “apresentar e defender pontos de vista”, condenando que, emnome da democracia, veículos de mídia proponham perpetuar a concentração, “sistemas legais antidemocráticos”. “Porque o monopólio é antidemocrático”, frisou, “dana e danifica a democracia”.

Vannuchi reiterou seu compromisso com a defesa do “princípio da indivisibilidade”: “quando os direitos de liberdade são atacados você compromete os de igualdade e vice-versa. Tem de trabalhar os dois igualmente”. Veja abaixo, a íntegra da entrevista:

Qual a avaliação que fazes sobre a eleição de um brasileiro à mesa diretora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEAneste contexto de disputa com os EUA, no qual o Departamento de Estado norte-americano atuou fortemente?
A campanha do Brasil se pautou na valorização desse perfil especial da diplomacia brasileira desde o período Lula e que prossegue com a presidenta Dilma. A campanha à vaga na OEA foi fortemente apoiada pela Secretaria de Direitos Humanos e sua secretária, a ministra Maria do Rosário, pelo Itamaraty, ministro Antonio Patriota (das Relações Exteriores) e do ministro Antonio Simões, que é o subsecretário-geral para a América do Sul, Central e Caribe. O Brasil tem hoje uma condição absolutamente única entre os 34 países membros da OEA, que deviam ser 35, pois Cuba foi excluída odiosamente. Hoje já existe uma resolução da OEA para trazer Cuba de volta, que aprovou o fim do bloqueio. O Brasil então cuidou em todas as nossas entrevistas, viagens para pedir apoio à candidatura, de exercer esta capacidade. Nenhum outro país da OEA tem a capacidade que o Brasil tem de intermediação. O Brasil é um país que conversa com os Estados Unidos, se senta à mesa, tem interesse em fazê-lo. Lula esteve lá várias vezes como presidente. Dilma vai ser recebida em outubro próximo como de chefe de Estado, que é um patamar especial de visita. E há a visão de que também é um país que defende a volta de Cuba à OEA, que se integra com os países bolivarianos, que foi fundamental no apoio ao Chávez e, agora no reconhecimento inequívoco da vitória eleitoral de Maduro, mas pautando sempre a compreensão de que a Comissão de Direitos Humanos não pode ser vista como órgão que reproduza as disputas políticas e geopolíticas do continente.

Há a compreensão da vitória integracionista, da unidade latino-americana, contra a dispersão das nossas forças. Como te sentes com esta responsabilidade?
Há o tema da chamada seletividade: países querendo atacar outros países em torno dos direitos humanos. Isso é ruim para as relações diplomáticas e ruim, sobretudo, para os direitos humanos. Os países têm de reconhecer que todos têm telhado de vidro. Os Estados Unidos não podem fazer pressão sobre Cuba ou Venezuela em torno deste ou daquele problema relativo aos direitos humanos enquanto eles próprios têm questões como Guantánamo, racismo, violência, exclusão de segmentos latino-americanos lá residentes, o seu sistema prisional.

Sem falar nas odiosas práticas antissindicais em favor das empresas.
No tema das práticas antissindicais, há experiências como a da empresa Nissan, do Mississipi, e muitas outras, em que chega ao ponto do ex-presidente da República George Bush visitar a fábrica e cumprimentar os trabalhadores por não terem aceitado a sindicalização.

Com esta trajetória de desrespeito aos direitos humanos, houve muita especulação de que os Estados Unidos teriam trabalhado contra a candidatura brasileira à OEA?
Nem estou certo de que os EUA tenham trabalhado contra a candidatura. Houve uma situação específica em que havia todo um favoritismo do candidato brasileiro e que teve menos votos do que estava sinalizado, coincidindo com uma visita do secretário de Estado John Kerry à Assembleia da OEA onde houve a eleição, o que pode, eventualmente, ter envolvido, mas isso é o que menos importa. O que importa, agora, é que como membro da Comissão este representante do Brasil vai poder insistir toda vez que se aprovar ou houver o risco de aprovar algum encaminhamento de seletividade. Por exemplo: a inclusão de países como se eles fossem países onde os problemas de direitos humanos são mais graves do que outros com objetivos ideológicos eu serei um membro da Comissão que vai argumentar com peso, força e representatividade. Foi reconhecido que o Brasil é de enorme importância, pois possui território, população, PIB, saldo democrático, sobretudo, mais recentemente, por ter enfrentado a pobreza, promovido uma transição democrática invejável do ponto de vista de ser um país com plena regularidade no funcionamento das instituições.Esse grande ativo vai pesar no nosso trabalho para que realmente o sistema de direitos humanos da OEA se fortaleça. E, para se fortalecer, ele precisa introduzir alguns equilíbrios que não foram mantidos no último período.

Dê exemplos de equilíbrios que não foram mantidos.
Primeiramente é preciso explicar que há uma situação antiga que envolve a compreensão mais ampla do que são os direitos humanos. Fala-se nos meios acadêmicos de duas gerações: a primeira dos chamados direitos civis e políticos, que envolvem os direitos de expressão, crença, de opiniões políticas, de participação política, o direito de voto, de eleger e ser eleito e outros direitos como o de não ser preso, de ter um processo legal, etc, e a segunda geração que contempla os chamados direitos sociais e culturais. O primeiro bloco – civis e políticos -, são os direitos de liberdade, e os direitos econômicos e sociais são os de igualdade. Durante muito tempo, nos séculos 19 e 20, houve uma contraposição que se pautava pela ideia de que, nos países capitalistas, os direitos de liberdade é que são importantes e que igualdade é uma questão secundária. Também houve um contraponto equivocado de que havendo direitos de igualdade, a liberdade era dispensável. Não é. O balanço do século 20 deixou muito claro isso. Já em 1993, a Conferência da ONU de Viena sobre direitos humanos, a mais importante que já aconteceu na História, afirmou este princípio da indivisibilidade, quando os direitos de liberdade são atacados você compromete os de igualdade e vice-versa. Tem de trabalhar os dois igualmente.

Mas como está essa compreensão hoje e de que forma ela influencia no equilíbrio de forças e fortalecimento da OEA?
Acontece que como a primeira geração historicamente é mais antiga existe uma situação em que, em Genebra, nas Nações Unidas, a sede dos dois comitês da ONU, dos dois grandes pactos: o dos direitos civis e políticos e o dos direitos econômicos, sociais e culturais – o nome das duas comissões tinha de ser esses que eu acabei de mencionar, mas não são. Um se chama Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e outro Pacto dos Direitos Humanos, Comitê dos Direitos Humanos. É sob esta visão que houve em tempos recentes, por exemplo no caso da Venezuela, uma percepção de que tema como o da liberdade de expressão e, particularmente, a chamada liberdade de imprensa, os jornais que são antichavistas foram tratados com bastante empenho, bastante cuidado, deixando em segundo plano por exemplo a questão do combate à fome, os direitos da criança e do adolescente, o direito à educação. Então, o nosso empenho na OEA será o de introduzir entre as duas gerações, equilíbrio entre as chamadas relatorias. Não pode a relatoria liberdade de expressão, que foi muito voltada para a Venezuela e o Equador e apoiada pela Sociedade Interamericana de Imprensa, contar com um milhão de dólares de doações para fazer seus trabalhos e a relatoria da criança e do adolescente contar com 50 mil dólares.

Isso reflete a seletividade da qual falaste. O próprio EUA que não assinam a Convenção dos Direitos Humanos interferem na condução de outros países sob o argumento da defesa dos direitos humanos.
É isso, claro que nunca de uma maneira confessada. Então o meu papel na OEA não será o de assumir uma posição de contraponto que leve a impasses, mas sim de exigir diálogo e equivalências. Se existe um problema importante que é trazido por sindicalistas, movimentos sociais, criticando, exigindo investigação de atitudes do governo da Venezuela, do Equador ou de qualquer país, eles precisam ser trabalhados, processados e investigados, assim como os problemas de violação dos Direitos Humanos nos Estados Unidos. Os EUA argumentam que são signatários da Convenção, mas que ela não foi ratificada, que é quando se complementa essa adesão. E que le não foi por ratificada por causa de resistências no Poder Legislativo.

A atual gestão democrata, o presidente Barack Obama, argumenta que é a favor da ratificação, mas não consegue apoio parlamentar para isso. Então que o governo norte-americano faça esse empenho. E nesse sentido também os membros da Comissão precisam ter essa compreensão de que os países da região passaram pela mais profunda mudança que já houve na história de 500 anos, desde que nasceram os estados nacionais aqui, estados coloniais. Ou seja, nos anos 1900 e na primeira década do século 20, a região se converteu no polo do planeta mais protegido contra o neoliberalismo, contra o Consenso de Washington, afirmando a ideia de que o Estado tem um papel sim, não se deve propor estado mínimo, não é o mercado que organiza a nação, mas a própria sociedade, que se expressa por meio também de sindicatos, de movimentos populares, de que a democracia consagra a legitimidade do dissenso, do direito de discordar, de divergir, mas ela é a vontade da maioria. E a vontade da maioria nos nossos países é a vontade dos segmentos mais pobres, da classe trabalhadora, do movimento sindical, dos sem-terra, dos sem teto. E nesse sentido a Comissão precisa completar o processo de tomada de consciência dela própria sobre isso.

Citaste o caso da imprensa na Venezuela. Como pretendes debater essa questão na Comissão?
Os relatórios da Comissão precisam valorizar mais os avanços no combate à fome, as políticas de distribuição de renda e colocar temas como o da liberdade de expressão, que geraram conflitos e até a decisão da Venezuela de se retirar, num contexto mais amplo e, em hipótese alguma, confundir liberdade de expressão e liberdade de imprensa com a agenda da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que é uma associação de empresários que precisa ser levada em conta pela Comissão de Direitos Humanos com a mesma importância que deve ser considerado os ponto de vista das Federações dos Jornalistas, dos trabalhadores, de outros segmentos. E não foi isso que aconteceu na Venezuela. Houve uma certa identificação com a agenda. A SIP é responsável por décadas de governos ditatoriais. Ela fez propaganda do golpe, os seus órgãos brasileiros, o jornal “O Globo” e outros apoiaram o golpe, defenderam todas as suas políticas, encobriram a tortura. Não podem vir agora invocar uma “liberdade de imprensa” quando se trata de um confronto entre autoridades políticas mandatadas pelo voto popular, que com base nas constituições legitimas de cada país adotam mudanças, marcos regulatórios. E, sobretudo, a Comissão não pode trabalhar uma ideia de liberdade de expressão sem promover em todos os países mudanças legislativas. Então ela pode recomendar em nome dos direitos humanos que as legislações permitam uma democratização do acesso aos meios eletrônicos, de papel.

A compreensão da comunicação como um direito humano fundamental.
Eu brinco com a frase de Decartes ”Eu penso logo existo”. No mundo de hoje eu comunico, logo existo. Quem não se comunica não é. A pessoa que não tem redes, que não tem possibilidades de apresentar e defender pontos de vista fica inteiramente fora de um cenário que é a vida política. Os direitos de participação que a Declaração Universal de Direitos Humanos consagra, que a Convenção Americana consagra, envolvem direitos ao acesso a ondas de rádio, a ondas de televisão. Então que seja num formato três terços: um terço para as empresas privadas – Rede Globo, Abril, Folha – e se elas tiverem eficiência e competência e conquistarem 95% da audiência, terão 95% da audiência -, mas que um terço seja do poder público, municipal, estadual, federal. As campanhas de vacinação hoje custam milhões de reais para o Ministério da Saúde só para divulgar os horários. E o terceiro terço das organizações sociais num sentido amplo de movimentos populares, de sindicatos, igrejas e grupos culturais que existem no território. Aí sim você tem um pressuposto da democracia.

Como são concessões públicas, devem ser colocadas a serviço da sociedade.
Evidentemente sendo as ondas de rádio e televisão concessões públicas é absolutamente sensato e democrático exigir que as pessoas sejam informadas, sem pagar nem um tostão para os donos das redes, de que vai ter uma vacinação neste domingo contra a poliomielite em tais locais, etc. Inclusive um dos principais teóricos norte-americanos da democracia, como James Medison, que é um dos fundadores do Estado americano, dizia que a concentração de poder, dana, danifica a democracia. Que para não haver concentração de poder todo o sistema de regras antimonopólios, direitos concorrenciais do capitalismo exige que as ondas de rádio e televisão sejam distribuídas, pulverizadas, como dizia Medison, para proteger a democracia. Em nome da democracia veículos, jornais, rádio e televisão propõem sistemas legais antidemocráticos. Porque o monopólio é antidemocrático. Tanto é assim que a CUT, o Primeiro de Maio no ABC centraram na campanha pela democraticação da mídia com a campanha “eu tenho direito a falar também”. É disso que se trata.

Dialogando com a Comissão Nacional da Verdade, a CUT compôs uma Comissão para contribuir com o resgate da memória histórica do ponto de vista sindical. Convidado, aceitaste assessorar e contribuir com esse coletivo. Como vês a iniciativa?
Esse convite me é muito honroso. E confesso que tendo trabalhado como trabalhei de uma forma que teve peso para que o Brasil tivesse hoje a Comissão de Verdade. Nem no momento de maior expectativa, de otimismo, eu imaginei que em tão pouco tempo pudéssemos ter as dezenas de Comissões da Verdade que o Brasil tem agora, passando da casa de centena e podendo chegar a centenas, porque a sociedade brasileira queria, precisava fazer esse exame e não tinha conseguido. Então eu reputo como um dos saldos mais importantes – e essa imprensa não vai reconhecer isso -, nos oito anos do governo Lula, o PNH3 (Programa Nacional de Direitos Humanos) com a proposta demarcadora de criar a Comissão da Verdade. E nesse sentido ela se multiplicou, como em nenhum outro país, em instâncias estaduais, do Legislativo, de governos estaduais, municipais e dos segmentos psicólogos. A a UNE, a CUT aprovaram a sua Comissão e agora eu me integro para ajudar.

Uma responsabilidade diferenciada pela própria particularidade do enfrentamento enquanto classe trabalhadora.
Exato. E o seu papel vai ser o de oferecer para a Comissão Nacional da Verdade, para as estaduais e para várias outras, uma força que é própria do movimento sindical, no caso da própria CUT, que é a sua capilaridade e chegar lá, em cada segmento profissional do Nordeste, da Região das Ligas Camponesas, do interior do Rio Grande do Sul, as heranças do Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra, fundado há 50 anos no RS), as heranças dos vários movimentos do período pré-1964, a violentíssima repressão. O 1º de abril de 1964 tem como alvo claro o movimento sindical, que era tido como o grande sustentáculo do governo João Goulart, das reformas de base. E isso é um resgate que não tem um sentimento revanchista ou de voltar os olhos do nosso país ao passado. Pelo contrário, é do futuro que se trata. Eu gosto muito de inverter a frase e dizer que não esquecer o passado, no caso, é sobretudo não esquecer do futuro. É do futuro que nós não podemos esquecer.

Uma contribuição às novas gerações.
O futuro do Brasil será um ou outro se o país conseguir completar esse processo apontando, conhecendo, transformando esse conhecimento do relatório final global, em livros, cartilhas, resumos, manuais, em peças que vão para todos os segmentos, que vão para as polícias, para as universidades, para todos firmarem esta perspectiva: de que a ditadura foi um processo fundamental na compreensão da violência que persiste hoje e de que deste esforço surgirão as melhores propostas de políticas para a não repetição. Por exemplo a educação em direitos humanos dos policiais, das Forças Armadas, para que em nenhum momento, em nenhuma condição, elas promovam novos golpes de Estado para depor presidentes eleitos pelo voto popular, violando a Constituição, que nunca mais se insurjam contra a regra da Constituição, que reconheçam o seu erro, que peçam desculpas por isso e sobretudo peçam desculpas pelas práticas de torturas. Hediondas são todas as torturas. São centenas de relatos de violências sexuais, violências contra crianças e mulheres, estupros, que evidentemente não podem ficar pelo resto da eternidade nas costas das Forças Armadas. Um país democrático precisa ter forças armadas e se orgulhar delas. E a democracia só vai poder se orgulhar das Forças Armadas brasileiras no dia em que elas forem capazes de reconhecer que foi um erro lamentável. Até o presente momento elas não conseguiram fazer. Pelo contrário. Não pode ter glorificação, avenidas, ruas 31 de março, o pico mais alto do Brasil é 31 de março. Tem que chamar Pico Brasil, Pico da Democracia, Pico da América ou o que quer que seja, mas não 31 de março, porque é uma odiosa data em que forças armadas depuseram um presidente eleito pelo povo quando as regras da Constituição diziam claramente que era preciso respeitar o processo democrático, a vida partidária, e trocar um presidente da República pelo voto popular ou pelo impeachment nos termos da lei. A CUT se engajar nisso como a UNE se engaja, como várias entidades estão fazendo, prova que o Brasil começa a descobrir aspectos e informações que mesmo pessoas como eu que se dedicam a esse tema há 40 anos ou mais a conhecer a cada dia coisas novas. Isso vai ser muito bom ao país. Isso vai ti terminar com um saldo de maturidade.

Podemos estabelecer comparações com outros países que também fizeram uma avaliação para superar traumas do passado?
Eu gosto de comparar com a Alemanha. O nazismo na Alemanha é incomparavelmente mais duro e violento do que foram os 21 anos de ditadura no Brasil, claro. Mas a Alemanha não se nega a estudar o nazismo nos bancos escolares. As crianças amam a Alemanha, mas sabem que houve Hitler, o Holocausto, que houve 60 milhões de mortos como resultado disso, o extermínio de seis milhões de judeus. O Brasil até agora não deu um passo para, no sua educação básica, ensinar as crianças que houve 21 anos de repressão, censura, violência contra a juventude, contra os que resistiram a um regime ditatorial. E quem resistiu ao regime ditatorial não é terrorista, tem de ser valorizado como herói, como lutador que honra a história do país.

O momento é de virar a página e escrever o futuro. De que forma a CUT deve agir para ajudar nessa nova escrita?
A CUT pode ajudar a descobrir coisas novas, revelar. A palavra é resgatar algo que no medo ficou oculto e que é muito constitutivo do movimento sindical de hoje. Cada militante nos seus momentos de dificuldade, que enfrenta uma derrota numa campanha salarial, enfrenta uma demissão, ataques como o interdito proibitório, sabe que é parte de uma história de luta que vem lá de trás, que vem lá de Zumbi dos Palmares, que o escravo era a classe trabalhadora daquele momento e que, sobretudo, naquele período recente em que muito de nós éramos vivos ou estávamos nascendo, houve uma ditadura e um movimento sindical que enfrentou esta ditadura. Enfrentou num primeiro momento esmagado pelos tanques, num segundo momento com greves derrotadas como as de Osasco e Contagem, com a implantação de pequenos grupos de ação sindical, de pastoral operária, de oposição sindical, que começaram a conquistar alguns sindicatos em meados dos anos 1970 e que a partir de 1978,1979 e 1980 viraram o cenário político brasileiro com a entrada em cena da classe trabalhadora em greves. A Vila Euclides sob a liderança do Lula. Isso tudo é constitutivo do movimento sindical que nós temos hoje. Se a gente esquece, perde essa memória, seremos dirigentes sindicais e militantes vinculados a situações pragmáticas, tomada de decisões casuísticas em cada momento. E se nós nos vemos como parte de uma história de uma cultura, o rumo fica claro, fica mais fácil definir qual tática adotar diante de questões políticas, partidárias, eleitorais ou de condução de uma greve, negociação de campanha. A CUT deve colaborar para o sentimento de justiça, porque não basta saber o que aconteceu, resgatar a memória e a verdade, e isso tudo ficar sem nenhum tipo de ação que balize o país daqui para a frente.Insisto que os torturadores, sobretudo pelo aspecto de demonstração, de preparação do futuro, de inibição dos torturadores que ainda vivem, praticam torturas, formam milícias, organizam chacinas e execuções sumárias, todos esses saibam que a tortura será punida sempre.

Isso significa colocar os torturadores na prisão?
É secundário discutir se a punição exige prisão, porque há outras formas de punição também. Argumenta-se que seriam velhinhos de 80 anos e que os principais responsáveis por tudo isso já morreram, então escaparam sem punição e que não haveria porque concentrar todo o empenho de justiça em meia dúzia de pessoas. Prisão não é a questão mais importante. A mais importante é que é preciso punir. Porque sem punir, o torturador de hoje ou o torturador de daqui um ano ou dez, ele sempre seguirá com essa ideia de que pode fazer porque nunca ninguém sofreu qualquer sanção por estar matando, eliminando, violando a lei. A tortura é até pior do que o homicídio porque ela viola a dignidade do ser humano, enquanto muitas vezes a execução não viola. Quando você pendura no pau de arara, tortura, estupra, se está cometendo um crime que é mais hediondo que a eliminação da vida.

O que cabe agora ao Estado brasileiro?
O que importa é que haja um pronunciamento nítido do Estado brasileiro repelindo. Não pode ser uma verificação genérica, ela precisa ser individualizada. Tem que citar nomes, datas, locais, porque aí sim a luz é lançada sobre isso. As punições podem ser civis, podem ser punições como o fim das aposentadorias, a declaração de que são torturadores e os seus nomes estarão inscritos para desonra do serviço público e do serviço militar. E isso vai exigir avanços também das Forças Armadas. Neste silêncio que elas mantêm embutido até hoje está uma parte de corporativismo que protege criminosos, assassinos em nome do interesse da arma. Evidentemente, o verdadeiro interesse do Exército, da Marinha e da Aeronáutica hoje é separar uma coisa da outra. Nesse sentido a exigência de justiça é uma das linhas da prioridade que a CUT, a UNE, e as várias comissões da verdade da sociedade civil buscará reforçar.

Como já abordaste várias vezes, a ditadura deixou reflexos na conduta de policiais, agora de latifundiários contra os indígenas e sem-terra. Esse reflexo condicionado pode ser transformado e mudar se fizermos esse resgate?
Este deve ser o empenho. Porque acontece que foi uma transição controlada durante muitos anos pelos próprios titulares da ditadura. Geisel tomou posse em 74 já anunciando uma distensão gradual e todo seu governo foi assim. Depois tivemos mais seis anos de Figueiredo. Só nas últimas horas a ditadura começou a perder o controle da situação, a partir de grandes mobilizações de massa. Então criou-se no Brasil uma ideia, que é muito danosa, que a gente não deve mexer nas feridas do passado, porque podem sangrar. As feridas do passado que não são tratadas, que não são higienizadas, não passam por nenhuma assepsia, essas sim infeccionam e podem se transformar em câncer, elas ficam em marcas profundas . São as chacinas que se repetem, o ódio anti-indígena dos fazendeiros do Mato Grosso do Sul, a cada semana se repetindo, na covardia do assassinato de lideranças indígenas, de gente pobre, vulnerável, que luta no limite da sobrevivência da própria vida, que não tem nada de seu. É a covardia de assassinatos feitos por pessoas mascaradas, jagunços muitas vezes de empresas irregulares de vigilância privada, contratados por fazendeiros. A situação é que não há um único caso até hoje no Brasil – e o de Dorothy Stang é exceção – de consolidação de sentença. Há uma condenação do Bida, do Taradão. E conseguem recurso, é anulado o processo. Nessas matanças indígenas não há um fazendeiro preso. Nem o caso de Marçal Guarani Tupãi, liderança que foi assassinada, que tinha estado em Manaus com o Papa João Paulo II representando os povos indígenas do Brasil. Nada disso terminou em investigação, em apuração rigorosa. Não realizou justiça. E quando não se realiza justiça segmentos da sociedade, muitos inclusive vinculados ao mundo criminal, entendem que se não há justiça para um lado da sociedade, não deve haver para ninguém. Então, se não há justiça, eu tenho o direito de recorrer às armas para praticar assaltos, praticar sequestros, e se entra num círculo vicioso que não tem solução. Esta é a oportunidade que o Brasil tem e nosso empenho deve ser para que esse círculo termine com uma claríssima e formal condenação de tudo isso. Com o Estado brasileiro pedindo desculpas, as Forças Armadas pedindo desculpas e se esforçando, se comprometendo publicamente a não repetir. A ideia de que vamos construir uma sociedade democrática daqui pra frente, com os torturadores adequadamente punidos.


Fonte: CUT

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