Em que a pesquisa com HIV pode auxiliar o combate à covid?

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Por Walter Pinto*

Pós-graduado em Genética e Biologia Molecular, o professor Aldemir Branco de Oliveira Filho, do Instituto de Estudos Costeiros, do Campus Bragança da UFPA, desenvolve pesquisa em saúde coletiva. Recentemente, ele realizou pós-doutorado sobre a epidemiologia do HIV em pessoas usuárias de drogas ilícitas no Pará e no Amapá. Baseado na sua experiência com estudos epidemiológicos com vírus causadores de doenças conhecidas mundialmente, ele indica pontos em comum nos caminhos trilhados pela ciência na produção de conhecimento sobre o novo coronavirus, o HIV e o vírus influenza, H1N1.

O novo coronavírus

Há diversos vírus pertencentes ao grupo do coronavírus. Eles podem fornecer algumas pistas sobre o comportamento dessa nova forma de corona à ciência, mas o SARS-CoV-2 é um vírus novo. Assim como qualquer novo vírus que surge na natureza, é necessário tempo para a aquisição de informações seguras e aplicáveis para identificação, controle e prevenção. Nos últimos meses, um esforço coletivo está sendo feito para obter informações seguras que possibilitem reduzir a transmissão do SARS-CoV-2, cuidar de forma eficiente dos infectados e prevenir novas infecções. Nesse sentido, o isolamento social e as medidas de proteção individual são as melhores estratégias para conter a dispersão do SARS-CoV-2 e evitar um colapso dos serviços de saúde.

A resposta da ciência

O tempo necessário para termos informações consistentes sobre um medicamento seguro e uma vacina eficaz contra o novo coronavírus é uma incógnita. Entretanto destaco que muitos cientistas estão realizando procedimentos para indicar resoluções que possam ser empregadas com sucesso nessa nova pandemia. Apesar de serem vírus distintos, podemos fazer uma analogia com a infecção pelo HIV. Atualmente, já podemos realizar ações precisas direcionadas para prevenir a infecção pelo HIV, dispomos de diversos testes laboratoriais para diagnosticar e monitorar esse retrovírus e podemos utilizar inúmeros medicamentos no tratamento, os quais têm possibilitado uma melhora significativa na expectativa e na qualidade de vida dos infectados. Porém, até o momento, ainda não foi descoberta uma vacina eficaz contra ele. Desde a década de 1980, diversos governos e empresas têm investido em educação, ciência e tecnologia, mas ainda há lacunas a serem preenchidas.

Por exemplo, o desenvolvimento de uma vacina leva em consideração a biologia do agente, altos padrões de exigência de qualidade e protocolos éticos em todas as suas fases. Equalizar todas essas “variáveis” não é fácil, especialmente no curto período de tempo. Entretanto essa equação já foi solucionada para diversos agentes infecciosos e podemos manter a esperança de que novas vacinas serão desenvolvidas, inclusive para o SARS-CoV-2 e para o HIV. Atualmente, diversos grupos de pesquisadores, oriundos de muitos países que investiram em educação, ciência e tecnologia, estão se unindo na avaliação de moléculas, medicamentos e de outros produtos que possam ser utilizados com sucesso na pandemia do SARS-CoV-2, assim como para o desenvolvimento de uma vacina eficaz para imunizar a população contra esse vírus. A ciência, associada à solidariedade e à boa vontade, é capaz de modificar o cenário da pandemia atual, ajudando na recuperação dos infectados e protegendo quem ainda não foi infectado pelo SARS-CoV-2.

Covid-19, AIDS e gripe: identidades

É possível fazer relações entre HIV, SARS-CoV-2 e outro vírus pandêmico. O uso de preservativo (masculino ou feminino) é uma das medidas de prevenção à infecção pelo HIV mais difundidas nas últimas décadas. Porém, por inúmeros motivos, ainda há pessoas no mundo que praticam sexo desprotegido e se arriscam a adquirir o HIV. De forma semelhante, o isolamento social, a higienização de mãos e o uso de equipamentos de proteção individual são medidas de prevenção à infecção pelo SARS-CoV-2. Porém, por alguns motivos, ainda há brasileiros que não executam essas medidas e incentivam outros a não se prevenirem também.

Numa perspectiva histórica, o isolamento social também reduziu o número de infectados e de mortes ocasionadas pela gripe espanhola (infecção pela influenza, vírus H1N1) no início do século XX. Muitas pessoas que não realizaram o isolamento foram infectadas e morreram, especialmente durante a segunda onda da dispersão viral.
Outra semelhança entre os três vírus é o caminho para a identificação laboratorial das infecções. Por exemplo, os mesmos protocolos para o isolamento de RNA viral e a transcrição de RNA para cDNA podem ser utilizados, assim como a confirmação ou o descarte das infecções pelo HIV, SARS-CoV-2 e H1N1 poderão ser feitos por reação em cadeia pela polimerase em tempo real, respeitando as especificações de cada vírus, como temperaturas para cada etapa do experimento e oligonucleotídeos específicos para cada genoma. Em suma, essas observações são algumas semelhanças que podem ser destacadas nesses três vírus pandêmicos.

HIV: quadro no Pará e Amapá

No Brasil, a epidemia de HIV/AIDS é classificada como estável em nível nacional, com uma prevalência em torno de 0,6%. No entanto essa prevalência pode variar de acordo com a região geográfica e, principalmente, com a vulnerabilidade socioeconômica e comportamental. No estudo sobre HIV em pessoas usuárias de drogas ilícitas (PUD) nos estados do Pará e Amapá, acessei 1.753 participantes em 42 municípios, a maioria deles de pequeno e médio porte. Foram detectadas elevadas prevalências de infecção pelo HIV (15,2%) e de coinfecções HBV-HIV (17,3%), HCV-HIV (12,4%) e HBV-HCV-HIV (5,3%). Entre os fatores socioeconômicos e comportamentais associados à infecção pelo HIV, estão: reduzido nível educacional, idade avançada (a partir de 40 anos), uso de crack e de drogas injetáveis, uso prolongado de drogas ilícitas, sexo desprotegido (anal e/ou vaginal), elevado número de parceiros sexuais e troca de sexo por dinheiro ou drogas. Formas puras e recombinantes do HIV foram detectadas e aproximadamente 1/4 dos infectados apresentava pelo menos uma mutação de resistência aos medicamentos utilizados em protocolos de tratamento. Além disso, nenhuma das PUD tinha ciência do estado de portadora do HIV e de outros vírus até participar da pesquisa e, consequentemente, nenhuma delas estava em tratamento antiviral. Em suma, este estudo forneceu informações iniciais sobre a epidemiologia da infecção pelo HIV na Amazônia, com implicações que indicam a necessidade urgente de estratégias para controle, prevenção e tratamento. A falta dessas ações pode estar contribuindo para a dispersão de cepas do HIV resistentes aos protocolos atuais de tratamento.

HIV e drogas ilícitas

O uso de drogas ilícitas pode estar associado à dispersão de diversos patógenos na Amazônia, haja vista aumentar a ocorrência de comportamentos que facilitam a aquisição e a transmissão deles, como sexo desprotegido, uso compartilhado de meios para consumo de drogas, troca de sexo por dinheiro ou drogas, múltiplos parceiros sexuais. Tal cenário pode ser modificado consideravelmente por meio da oferta de serviços públicos e eficientes para atendimento das PUD nos municípios de porte médio e pequeno na Amazônia, como Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Outras Drogas, Centro de Testagem e Aconselhamento e Centro para Tratamento da Dependência Química. Nesses locais, as PUD poderiam ser atendidas e tratadas em relação à dependência química, receberiam orientações e ferramentas para a preservação de infecções sexualmente transmissíveis, realizariam testes para identificar a presença de patógenos, como HIV, HBV, HCV e Treponema pallidum. Assim, esses serviços poderiam monitorar e tratar com qualidade o público-alvo e, por consequência, oferecer melhor expectativa e qualidade de vida para essas pessoas.

*Aldemir Branco é professor do Instituto de Estudos Costeiros (Campus Bragança/UFPA) e desenvolve pesquisa em saúde coletiva

 

Fonte: Jornal Beira do Rio (UFPA)

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