Gripe Espanhola: a pandemia esquecida que varreu o mundo em 1918

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Por Joana Monteleone*

A Gripe Espanhola parou o mundo em 1918.

Essa coluna era para ser leve, sobre histórias da alimentação, mas a pandemia do novo coronavírus me pegou e passei as últimas semanas em casa, assistindo estarrecida as notícias e contando o número de mortos pela televisão. Imediatamente comecei a pensar na história – quando havia acontecido uma pandemia parecida? E as pestes? Como a humanidade reagiu? O que aconteceu então?

A última grande pandemia altamente infecciosa e letal foi a Gripe Espanhola, em 1918. Revolvi então escrever sobre ela. Depois de passarmos por isso, eu volto a escrever sobre alimentos. Essa resolução também tem muito a ver com um livro específico, “A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade”, de Claudio Bertolli Filho. Essa coluna é uma homenagem a esse grande livro, escrito por um excelente historiador.

Foram três grandes ondas de gripe. A primeira, detectada em março de 1918 no Kansas, nos Estados Unidos, foi mais branda, atingido um campo de treinamento de soldados que se preparavam para ir à Europa lutar na Primeira Guerra Mundial. A segunda, mais letal, atingiu a Europa em cheio, matando soldados nas trincheiras e a população civil nas cidades. Quando retornou aos Estados Unidos, em julho, a taxa de letalidade estava entre 6% e 8% dos gripados. A última foi entre fevereiro e maio de 1919, também foi mais branda. Os países europeus em guerra facilitavam a propagação da doença – trincheiras frias e encharcadas nos dias chuvosos, hospitais aglomerados e desnutrição foram, ao mesmo tempo, agravantes e disseminadores da doença.

Cerca de 250 mil pessoas morreram no Reino Unido, 400 mil na França, 400 mil na Alemanha. Em Portugal foram 120 mil mortos. Nos Estados Unidos, entre 500 mil e 675 mil pessoas morreram por causa da gripe.

O nome da doença tem uma história interessante. Com os países europeus em guerra, o número de mortos tanto nos campos de batalha como de doenças era censurado. A Espanha foi severamente atingida pela gripe e sofreu com um número elevado de mortes. Mas o país não estava em guerra e não sofria com a censura à imprensa. Lá, a gripe recebeu o nome de “gripe francesa”, enquanto em Portugal era chamada de gripe pneumômica. Mas as notícias que chegavam da Espanha corriam os países em conflito, e parecia, assim, para quem lia, que o país era o grande difusor da doença.

A gripe afetava particularmente um grupo de pessoas, os mais jovens, entre 20 e 40 anos de idade. Os cientistas têm hoje uma explicação para o fenômeno. O corpo dos infectados recebia uma elevada dose de resposta quando contraía a doença – essa reação foi chamada de tempestade de citocina, quando o corpo reage de maneira extrema a um vírus, é uma hiper-reação do sistema imunológico. Os que tinham um sistema imunológico deficiente, como os mais velhos e as crianças, morriam menos.

O Brasil sofreu com a Gripe Espanhola ao mesmo tempo que a Europa – tendo a gripe chegado ao país em vários dos navios que aqui atracaram em 1918. Dentre os navios o mais conhecidos por trazer doentes da gripe estava o Demerara, que chegou aqui em setembro daquele ano. Outubro, novembro e dezembro foram os piores meses da infecção, os que mais mataram gente, tanto aqui como no resto do mundo.

No princípio, assim que a doença chegou, os governos das maiores cidades do país, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro ou São Paulo, não levaram muito a sério a doença. Com o número de infectados aumentando a cada dia, bem como os cadáveres nas ruas, tiveram que tomar providências pressionados pela população.

A Gripe Espanhola não tinha remédio, então os jornais anunciavam uma enorme variedade de tratamentos, que iam das medicações dos médicos “oficiais” a receitas caseiras que envolviam sempre alho, cebola e limões, de preferência ingeridos com pinga. Esses últimos foram tão procurados que sumiram repentinamente das cidades. Um dos remédios sugeridos pelos médicos foi o quinino, que normalmente era utilizado contra a malária – e que, no tratamento desta doença, foi substituído pela cloroquina, hoje receitada por alguns sem que se tenha qualquer estudo conclusivo sobre sua eficácia contra a covid-19.

Quando a Gripe Espanhola atingiu o país com força, as autoridades, num primeiro momento, fingiram que não viram. Rodrigues Alves, que governara o estado de São Paulo por três vezes e já fora presidente da República entre 1902 e 1906, em março de 1918, venceu a eleição para a presidência com 386 mil votos, contra apenas 1.258 do opositor Nilo Peçanha (deixemos a questão da “democracia” na República Velha para outro dia), mas não conseguiu tomar posse: estava doente da gripe em 15 de novembro de 1918 e morreu, na capital do país, o Rio de Janeiro, em janeiro de 1919 sem assumir o posto – depois de um breve governo do vice Delfim Moreira, novas eleições foram organizadas e vencidas por Epitácio Pessoa.

Os ilustres vereadores de São Paulo (SP) colocaram nas mãos do prefeito e do governador o poder de decidir tudo o que a cidade precisaria para atravessar aqueles tempos difíceis. Após esse consenso, a maioria recolheu-se em seus palacetes ou foi para suas fazendas no interior paulista.

A população, sem a mesma possibilidade, clamava por ações. Em pouco tempo algumas medidas foram tomadas, parecidas com as de hoje – isolamento, suspensão de aulas, de missas, fechamento de oficinas e fábricas. Mas a maioria do dinheiro destinado a combater a infecção em São Paulo foi destinado a pagar coveiros e caixões. Alguns itens de alimentação escassearam e muitos empresários lucraram com o desabastecimento. O governo limitou-se a baixar uma norma tabelando os itens de primeira necessidade, mas, sem fiscalização, tudo ficou como estava.

Alguns nomes de famílias de tradicionais na política aparecem tanto na epidemia de gripe espanhola de 1918 como nos dias de hoje. Na época, Alfredo Pujol (que hoje dá nome a uma rua na zona Norte da cidade) era um advogado que se tornou superintendente administrativo dos hospitais da cidade, responsável pela sistematização dos dados sobre a mortalidade gripal, sobre o número de vagas nos hospitais e pela distribuição domiciliar de receitas aviadas em farmácias. Hoje Edson Leal Pujol é comandante do exército e vem dando declarações acerca da atual pandemia do novo coronavírus. Na estranha e permanente configuração política brasileira, em que as mesmas famílias governam há séculos, não é demais perguntar: seriam parentes?

O cotidiano de São Paulo durante a Gripe Espanhola foi marcado pela morte. Claudio Bertolli Filho mostra no seu livro que a maioria da verba gasta por Washington Luís, então prefeito da cidade, foi na abertura de novos cemitérios, como o da Lapa, e aumento de covas em cemitérios já existentes, compra de caixões e contratação de coveiros. A prefeitura então alugou o Palace Theatre, um grande prédio no começo da avenida Brigadeiro Luís Antônio, e transformou-o num imenso necrotério improvisado. De lá saíam centenas de enterros para diferentes cemitérios da cidade.

Por causa dos inúmeros boatos referindo-se às histórias macabras envolvendo enterros, a profissão de coveiro subitamente se valorizou. Ninguém queria estar envolvido num trabalho de alto risco e que envolvia várias irregularidades e até ilegalidades no trato dos defuntos da gripe.

Mesmo assim, 896 trabalhadores estiveram envolvidos nos processos de enterramento dos mortos da cidade no período, quase vinte vezes mais que o número de coveiros antes do início da epidemia: 47. Isso nos dá ideia do tamanho do problema na época, mostrando que claramente os números de mortes por gripe espanhola estavam sendo claramente subnotificados. Foram abertas, na época, 11.762 covas.

Ao contrário de outras cidades, que abriram valas comuns, Washington Luís orgulhava-se de dizer que os cidadãos paulistanos eram enterrados em covas individuais, com caixões próprios. Assim como hoje, durante a pandemia, assistir aos enterros estava proibido por causa do risco de contágio – o que também facilitava manobras políticas dos gestores das cidades para esconder o número real de mortos.

Os jornais da época fervilhavam com denúncias de que existiam, sim, enterros em valas comuns em São Paulo. Bertolli foi aos livros de registro dos cemitérios. Na necrópole do Brás, por exemplo, ele achou documentos dos gestores do cemitério avisando a prefeitura da existência de 5 valas comuns com um total de 377 cadáveres – em uma delas foram enterradas 91 pessoas. No cemitério da Vila Mariana, o gestor do lugar usava outra tática: valas que continham 5 ou 6 urnas funerárias. Muitas dessas valas tiveram de ser reabertas depois e os cadáveres exumados quando a onda da gripe passou.

Uma das coisas estranhas da pandemia de Gripe Espanhola no mundo foi seu, digamos, “desaparecimento social” assim que a epidemia arrefeceu. Foi como se ela nunca tivesse existido. As pessoas continuaram com suas vidas, evitando lembrar dos dias de horror por que haviam passado.

A epidemia foi praticamente esquecida por historiadores, com algumas exceções, como o livro de Bertolli, jornalistas e médicos até quem uma nova epidemia de influenza, a do H1N1 dos anos 2000, ressurgiu. Foi então que médicos e pesquisadores se voltaram novamente a tentar entender o comportamento dos vírus e dos homens durante as grandes pandemias.

*Joana Monteleone é editora e historiadora. Autora dos livros “Toda comida tem uma história” (Oficina Raquel, 2017) e “Sabores Urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo” (Alameda Casa Editorial, 2015).

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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