Meu relato sobre a eleição (de hoje) não é o voto

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*Por Artênius Daniel

Entrei na ocupação dos estudantes de uma escola estadual da região da Pampulha, Belo Horizonte, ontem (29) ao meio dia. Protestam contra a PEC241, que congela o dinheiro da educação pública no Brasil por 20 anos. Tensão. O Tribunal Regional Eleitoral não aceitou que os alunos permanecessem ali pacificamente durante a eleição de hoje. A tropa de choque da polícia estava a caminho. A reintegração seria incondicional e, como de praxe, provavelmente violenta. Os estudantes sabiam, porém não se intimidaram.

Na quadra, as barracas de acampamento organizadas lado a lado e um violão na mão de alguém. Nos corredores, cartazes de cartolina em letra cursiva orientavam as regras dos espaços e pregavam o carinho da ocupação com o local. Aqueles meninos e meninas de 15, 16 anos amam a sua escola como se fosse a sua casa. Dali a poucos minutos, a polícia poderia arrebentar a porta da frente e avançar para dentro com tiro e bomba. Porém, era hora do almoço e a decisão foi, normalmente, almoçar.

Como em um dia qualquer. Fomos convidados pra comer também. O menu era galinhada com frango frito, feita a partir da receita de uma das mães. Eles se revezavam para servir, conferir quem ainda não comeu, limpar a cozinha, todos cuidando de todos. Sentei com meu prato e comi metade. Foi exatamente nessa hora que a Justiça chegou para a desocupação.

O oficial, terno escuro, pinta de ameaçador e malvado, marchou pelo pátio procurando os líderes do movimento. Acabou chegando à cantina onde estávamos. Todos sabiam quem era ele e porque estava ali. O silêncio foi criado. E foi aí então que um estudante fez a pergunta espontânea que só cabe àqueles que vivem e lutam com honra. A pergunta que só pertence aos grandes e nunca aos medíocres. A pergunta que só pode ser disparada assim, à queima roupa, pela nobreza do coração que a permita romper dos lábios: “O senhor já almoçou? Hoje tem galinhada. Quer um prato?”. E ali, vendo aquele homem que representa a lei almoçando a comida feita pelos adolescentes que ele ameaçava naquele minuto bombardear, pensei muito sobre a diferença entre legalidade e legitimidade.

O judiciário golpista brasileiro não tem nem de perto a magnitude legítima desses meninos e meninas que ocupam suas escolas de norte a sul. O prefeito que for eleito em Belo Horizonte não terá uma menor fração da autoridade legítima desses meninos e meninas frente à sua cidade, o seu país. Os que tentam silenciar as ocupações, seja desmerecendo a capacidade e independência dos estudantes ou tentando amedronta-los, são na verdade quem tem medo do enorme poder legítimo cingido entre aquelas rodas de violão, assembleias políticas e cartazes de cartolina.

A negociação que se seguiu após o almoço trouxe a vitória dos adolescentes e o recuo do tribunal eleitoral e da polícia militar. Não foram retirados. Hoje houve simultaneamente eleição e ocupação nessa escola, que tem ironicamente o nome de Escola Estadual Três Poderes. Não sei atualmente na história do país qual desses três reconheço. Nem consigo saber se essas eleições de hoje estão valendo ou não. Mas sei o que é legítimo fora das salas onde estão as urnas e logo ali do lado, na quadra, junto das barracas de acampamento que foram erguidas.

*Artênius Daniel é diretor de Cultura do Sindicato dos Jornalistas de Minhas Gerais

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