Os dois discursos e a Medida Provisória 1.099

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Por Leomar Daroncho I MPT*

A pretexto de diminuir os números do desemprego no país e enfrentar os impactos econômicos da pandemia, o governo publicou no dia 28 de janeiro de 2022 a Medida Provisória (MP) 1.099/2022.

A MP cria o Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário, espécie de contrato de trabalho para jovens de 18 a 29 anos ou pessoas com mais de 50 anos, a cargo das administrações municipais, sem os direitos trabalhistas e previdenciários decorrentes dos vínculos de emprego.

Independentemente das possibilidades de utilização criativa da medida em ano eleitoral, sem concurso público; de se tratar de modalidade de contrato precário, semelhante àquele rejeitado pelo Senado quando derrubou a MP 1.045/2021, no final de 2021; e da incongruência do modelo com a Constituição, importa analisar, neste espaço, as justificativas apresentadas para a medida provisória.

A categoria do trabalho pretendido pela Constituição – a única passagem em que a Constituição utiliza o termo “primado” refere-se ao trabalho – certamente não quer dizer qualquer ocupação. Remete ao trabalho digno, com os direitos básicos assegurados, até mesmo como mecanismo de assegurar o desenvolvimento do mercado interno, vital para sustentação das atividades econômicas.

A medida provisória é um instrumento com força de lei, adotado pelo presidente da República em casos de relevância e urgência. Produz efeitos imediatos, ou seja, vale a partir da edição. Concomitantemente, o seu processo legislativo segue tramitando no Congresso Nacional e, sendo aprovado, na Câmara e no Senado, será transformada definitivamente em lei.

As justificativas da medida provisória vieram estampadas no corpo de sua publicação – Exposição de Motivos – com afirmações como as de que:

. as ações do governo para a manutenção da atividade econômica (Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda) teriam sido insuficientes para a recuperação da população ocupada, no ano de 2021;
“as condições do mercado de trabalho brasileiro ainda apresentam deterioração, combinando desemprego elevado com crescimento de subocupação e desalento”, notadamente entre os jovens (“29% entre jovens de 18 a 24 anos”);

. a informalidade, no início das atividades produtivas, induziria consequências negativas para a vida, denominadas como “efeito cicatriz, resultando em baixa autoestima e baixos salários”;

. a taxa de desocupação de 15% no Brasil (Ipea/maio de 2021) “não reflete integralmente a realidade, pois desconsidera o aumento do número de desalentados;

. há expectativa de aumento da taxa de desocupação na medida em que as pessoas retornem ao mercado do trabalho, do qual teriam saído pelo receio da contaminação (estimado em 5,4%), pelo suposto relaxamento das medidas de contenção da Covid-19 e pelo fim do auxílio emergencial. O quadro é descrito pelo Ministro do trabalho como “grave” e “dramático”.

A Exposição de Motivos da proposta enviada ao Congresso Nacional é o espaço em que o presidente da República deve justificar o porquê de não ter optado pelo procedimento legislativo ordinário, ou pelo regime de urgência constitucional. A Medida Provisória exige a demonstração da urgência e da relevância, pressupostos específicos desse ato (art. 62). Mas aqui não se pretende questionar a relevância e a urgência da iniciativa.

A questão que se coloca é analisar se as justificativas usadas são sérias e reais.

No dia 31 de janeiro de 2022 (segunda-feira, primeiro dia útil após a publicação da medida provisória), a página oficial do Ministério do Trabalho e Previdência na internet [1] apresentou matéria em que o ministro comemora dados de dezembro de 2021 do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – Novo Caged.

Segundo o ministro, que destacou a atuação do governo federal na manutenção de empregos e na melhoria do ambiente de negócios, comparando com a gestão anterior, julgada como desastrosa, “o ano de 2021 encerra com saldo positivo e histórico de 2.730.597 milhões de novas vagas de emprego. Desde o início do governo, de janeiro de 2019 a dezembro de 2021, já são 3.183.221 de vagas com carteira assinada”.

Em texto do início de 2021[2], abordamos a farsa praticada na celebração do suposto recorde na criação de empregos, com números do “Novo Caged”, instituído a partir de janeiro de 2020.

Destacamos o truque: a base de dados do “Novo Caged” incorporou novidades tais como: servidores da administração pública, federal, estadual ou municipal; fundações supervisionadas; trabalhadores avulsos; diretores sem vínculo; servidores públicos não efetivos; dirigentes sindicais; autônomos; eventuais; ocupantes de cargos eletivos; estagiários; empregados domésticos; cooperativados; e contrato por prazo determinado.

Trata-se de base em construção, em fase de transição dos sistemas informacionais, que não se presta à comparação simplória com a metodologia anterior, a menos que o objetivo seja o de turvar a percepção da realidade.

Vale referir que a gestão anterior, expressamente criticada pelo ministro, refere-se aos anos de 2015 e 2016, época em que, segundo a série histórica do Pnad/IBGE[3], o desemprego oscilou entre 8 e 12%. Trata-se do período em que tramitou o processo de impeachment da ex-presidente da República, que culminou com a posse definitiva de Michel Temer, após exercer interinamente o cargo por cerca de três meses, em 31 de agosto de 2016.

Não há como negar as nuances de ato político na iniciativa de um Projeto de Lei do executivo. Ainda assim, a origem e a tramitação da proposta na forma de um ato administrativo, não parece dispensar a análise dos requisitos de validade de um ato administrativo que, nessa perspectiva, pode conter vícios quanto ao motivo, em ao menos duas situações: o motivo inexiste (o ato é nulo); ou o motivo é inidôneo, ilegítimo ou inadequado – a razão alegada, embora verdadeira, não se revela apta a legitimar a prática do ato. Hipótese em que o ato é igualmente nulo.

Existe ainda a possibilidade de análise na perspectiva do requisito da finalidade que, em determinadas circunstâncias, pode indicar que o ato foi praticado por agente público segundo suas competências, porém, visando a um fim diverso daquele previsto em lei ou na Constituição.

No campo do Direito Administrativo, desenvolveu-se a Teoria dos Motivos Determinantes, segundo a qual a validade do ato está vinculada à existência e à veracidade dos motivos apontados como fundamentos para a sua adoção. No espaço da atuação judicial, para viabilizar o convencimento e o controle das razões que a sustentam, a Constituição exige que as decisões sejam fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX).

Para além de tudo isso, parece fora de questão que devem ser sérias as manifestações oficiais e as justificativas apresentadas na Exposição de Motivos de uma medida provisória que pode ser convertida em Lei e afetar tão significativamente a vida de milhões de brasileiros, regidos por uma Constituição que estabelece que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Também está fora de questão que o Congresso Nacional, os parlamentares, o Ministério Público, para o desempenho de suas atribuições na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, e o Poder Judiciário, se provocado, estão legitimados a cobrar dos agentes que detêm a iniciativa de proposições legislativas que utilizem justificativas fidedignas, até como forma de manutenção dos poderes independentes e harmônicos entre si, no propósito de atingir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e de construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Assim, antes da apreciação da MP, caberia indagar ao autor das duas mensagens que se apresentam contraditórias, veiculadas em espaços oficiais na sexta-feira e na segunda-feira imediata, se houve erro ou equívoco e se uma delas deve ser ignorada.

*Leomar Daroncho é procurador do Trabalho

 

Fonte: Rede Brasil Atual

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